21.03.2025, sexta – Preparando o VII aniversário da ESFA
Confesso que sinto algum desânimo e deceção. Todos os convites formulados e entregues a pessoas e entidades não tivemos qualquer resposta. Algumas pessoas e amigos com quem contávamos, à última da hora, não puderam participar. Das cartas enviadas ao senhor Primeiro Ministro Xanana Gusmão e ao senhor vice-primeiro Ministro Assanami Sabino também não houve resposta.
Foi então que disse para o Eustáquio: “Não faz mal. Vamos celebrar o aniversário entre nós (professores, alunos, famílias)”. E elaborei um pequeno programa para o efeito, simples mas bonito, que a seguir apresento.
ESCOLA SÃO FRANCISCO DE ASSIS “PAZ E BEM”
– Boebau / Manati – Leotalá
VII aniversário
1. Boas vindas
- Eustáquio
- Hino da Escola
2. Imposição de tais
3. Celebração:
- Cântico “Vamos aclamar o Senhor”
- Cântico das criaturas
- Música “Amazing Grace” com leitura da Oração de S.Francisco
- Cântico “Nós damos graças ao Senhor”
4. Inauguração do muro de proteção
- Leitura do poema “O Muro” de Alberto Oliveira
- Música de acordeão e canas, paus, pedras
5. Canções portuguesas:
- “A Chuva” )
- “A dar-te um beijo” ) Adobe
- Abre a janela /As modinhas / É bom camarada
6. Parabéns a você
- Canto dos Parabéns
- Corte e distribuição do bolo e do champanhe
7. Almoço para crianças e adultos
8. Visita às instalações da escola e casa dos professores
Depois de um pequeno ensaio com a Adobe e o Eustáquio, achamos que já estávamos preparados para o dia seguinte. Toca a descansar…”Vamos a la cama que hay que descansar / Para que mañana podamos trabajar” (canção espanhola para as crianças irem para a cama).
22.03.2025, sábado – VII aniversário da ESFA
De manhã cedinho, toca a levantar para que a hora marcada iniciemos a viagem até Boebau que, como sempre, será uma aventura no bom e no mau sentido: caminhos difíceis em que tanto veículos como pessoas têm de andar aos saltos, e onde nós os mais velhos, katuas, ficamos feitos num oito, todos escangalhados, mas também paisagens muito bonitas, com pessoas amáveis que nos dão o “bom dia!"...
 nossa chegada já se ouviam as crianças da SFA cantando, sob o comando de Titânia, uma nossa antiga aluna que agora frequenta a escola CAFE de Liquiçá. Logo que descemos as escadas, toda aquela gente corre para nós para o ritual do “beija mão”, ou outros cumprimentos mais ocidentais.
Mais ou menos à hora prevista, começou a realização do programa, que não foi cumprido na íntegra porque, a um determinado momento, começou a avistar-se um carro da polícia, seguido de mais seis carros de Estado. E, num grito, alguém anunciou: “Xanana!...Xanana!"...
Foi um autêntico reboliço que se gerou. Programa interrompido, para ir receber o Sr. Primeiro Ministro e todo o seu séquito. Ao som de palmas e de aclamações, eu e o Eustáquio fomos ao seu encontro, e depois de uma saudação efusiva, perguntei: “Porque não nos respondeu?”. E ele respondeu: “Quis fazer-vos uma... surpresa!”
E pronto, a partir daqui o programa teve que ser alterado mas não na totalidade. Continuamos a pequena cerimónia, agora com a presença de altas individualidades e do povo de Boebau que ao saber da presença do Kay Rala Xanana se aglomerou na escola e nas redondezas.
Ficamos muito bem impressionados com a simplicidade, a empatia e a capacidade desta personagem emblemática para Timor Leste e para o mundo. O sr. Primeiro ministro falou e disse coisas importantes, cantou e orientou a cantoria, distribuiu comida às crianças, tirou fotografias com quem solicitou, etc…
Embora já tivéssemos um bolo de aniversário, ele preocupou-se de trazer um bolo de aniversário enorme, bonito, aonde podemos ler “ Escola S. FRANCISCO DE ASSIS “ Paz e Bem”/ VII aniversário / 22 de Março de 2025”, e que depois cortou e partilhou pelas crianças e adultos.
Trouxeram também carregamento de sacos de arroz, caixas de supramin, caixas com garrafas de óleo, livros para as crianças e caixas com camisolas (t-shirt), que oportunamente serão distribuídos pelas famílias mais carenciadas.
Depois do almoço para adultos e crianças, e depois de uma prolongada sessão de fotografias, chegou a hora da partida. Todos agradecemos esta agradável surpresa e, ao som de palmas e de agradecimentos, o senhor Primeiro Ministro e seus acompanhantes procederam à retirada, até porque tinham ainda de marcar presença noutro evento.
Dia memorável em Boebau. Dia memorável para a ESFA. Diz-se por cá, que este dia vai ficar para sempre, e que há dois acontecimentos que ficam na história de Boebau, a saber: a inauguração da Escola São Francisco de Assis e a visita do Senhor Primeiro Ministro Kay Rala Xanana Gusmão.
E assim o VII aniversário da ESFA se tornou num facto histórico. Imaginam com certeza o nosso inebriamento, a nossa alegria, a nossa satisfação. A visita do Sr. Primeiro Ministro foi muito importante, que muito agradecemos. Mas não é de menor importância a sensibilidade
Assim, e a pedido dele, estamos a preparar um pequeno portefólio sobre a escola, de modo a ser-lhe entregue durante estes oito dias. Depois veremos. Mas temos esperança que, desta vez, ou “vai ou racha”, porque há pessoas em lugares de chefia que podem tomar essa decisão.
“Sursum corda!” (Corações ao alto!)
22.03.2025 – A seguir…
Embora extenuados pelo cansaço corporal e pelas fortes emoções, tivemos de pensar também no regresso a Dili. Mas a chuva era tanta e o nevoeiro tão intenso que não ousamos fazer a viagem. Não valia a pena arriscar. Tivemos então que decidir pernoitar em Boebau, para amanhã regressar à capital.
E vai daí, tivemos tempo para tudo: para entregar as prendas e os donativos dos padrinhos, para em amena cavaqueira bebermos o café timorense, e para mais uma vez. sermos “instrumentos de paz”. Já não é a primeira vez que sou chamado para
exercer tal função perante situações conflituosas, às vezes até muito violentas. Talvez porque sou katuas e malai, e porque sou associado à figura de São Francisco de Assis e à escola “Paz e Bem”, todos têm um grande respeito e carinho por mim. O grande interlocutor destas situações é sempre o Eustáquio que me disse” Tiu, temos de ir a casa de… para falar com… e para ele(a) perdoar e fazerem as pazes”.
Missão cumprida. Fizemos o que devíamos, e o resto cabe a Deus. Mas, parece que deu resultado. À noite, na casa para os professores, cada um procurou o seu canto para poder descansar.
23.03.2025, domingo – O regresso à base
Logo de manhã, porque temíamos que a chuva e o nevoeiro nos boicotassem o caminho, aí vamos nós. Nada de relevante, a não ser os buracos e a lama (manteiga) em alguns troços do caminho, o leito da ribeira que não tem dez metros que sejam direitos, a boa estrada de Liquiçá a Dili e, para a gente não se habituar, o calvário dos caminhos (mercado de Perunas e seguintes) que nos trazem até aqui, em Ailok Laran.
Normalmente, seja na ida ou na vinda, fazemos uma paragem antes da descida para qualquer direção, a fim de arrefecer o motor da pickup e dos fumadores engolirem o fumo de dois ou três cigarros.
O local da paragem é um sítio lindíssimo, donde se avistam paisagens maravilhosas aonde predominam árvores de grande porte (20 a 30 metros de altura, com uma copa a condizer) – a madre cacau – que abriga os cafeeiros. Ouve-se um som muito intenso que é produzido pela grande quantidade de cigarras que povoam a copa destas árvores.
Foi então que o Eustáquio me saiu com esta: “Quando eu era garoto, à noite acendíamos uma fogueira, e as cigarras atraídas pelo fogo caíam em cima do lume, ficavam assadas e a gente comia”.
Ora aqui está mais uma descoberta, mais um grande petisco. Mas não as comeram todas, como se pode verificar pelo som atordoador que ouvimos. Dó que, se a moda pega, não há cigarra que resista, e teremos mais uma espécie em vias de extinção.
25.03.2025, terça – Carta de Agradecimento
Hoje fomos entregar no Palácio do Governo, Gabinete do Sr. Primeiro Ministro a carta de agradecimento pela visita surpresa que nos fez, assinada por mim e pelo Eustáquio, em nome da ASTIL de Portugal e da ASTILMB de Timor Leste, em nome das crianças e adultos da Escola São Francisco de Assis, em nome do povo de Boebau.
Jà ontem tivemos uma reunião de trabalho com o amigo Rui Pacheco, técnico do governo na área de apresentação de projetos, que se disponibilizou para elaborar um pequeno dossiê sobre a ESFA, a fim de ser entregue ao primeiro ministro Xanana Gusmão e ao vice primeiro ministro Assanami Sabino, que eles próprios me solicitaram.
O Ministro Ray Kala Xanana pediu-me em Boebau para lhe fazer chegar esse relatório nos próximos oito dias. Tudo faremos para que assim seja. E esperamos com alguma ansiedade que nos façam chegar decisões que sejam a solução para os problemas que enfrentamos.
Sua Excelência
Kay Rala Xanana Gusmão
Primeiro Ministro da República Democrática de Timor Leste
Com os nossos melhores cumprimentos, vimos agradecer a Vossa Excelência a visita surpresa que nos fez por ocasião da celebração do VII aniversário da Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem”, em Boebau, nas montanhas de Liquiçá, suco de Leotalá. A presença de Vossa Excelência, bem como de todas as pessoas que o acompanharam, foi para todos nós motivo de honra e satisfação, que deu a esta escola projeção ímpar tanto em Timor Leste como noutras partes do mundo, sobretudo no país irmão Portugal.
Apreciamos muito a sua simplicidade e a sua empatia com as crianças e adultos presentes, e vamos guardar bem nos nossos corações e nas nossas memórias este dia extraordinário da visita do Sr. Primeiro Ministro Kay Rala Xanana, personagem muito querida e respeitada por esta gente das montanhas.
Dia 22 de março de 2025 fez-se história em Boebau, fez-se história na Escola São Francisco de Assis “Paz e Bem”
MUITO OBRIGADO SENHOR PRIMEIRO MINISTRO, em meu nome pessoal (abô Rui), em nome do Coordenador da ESFA (Pai Nino), em nome da Escola São Francisco de Assis(ESFA), em nome da Associação de Amigos de Timor Leste de Portugal (ASTIL) eda Associação de Amigos de Timor Leste de Manati/Boebau (ASTILMB), em nome de todas as crianças e pessoas de Boebau e localidades mais próximas.
Queremos também manifestar a nossa disponibilidade para colaborar, segundo as nossas possibilidades, na educação e desenvolvimento deste país irmão, ao qual estamos intensamente ligados por laços culturais e de amizade. Timor Leste, e particularmente as crianças mais necessitadas das montanhas e dos bairros mais pobres de Dili, estão no nosso coração. Que São Francisco de Assis a todos nos abençoe…
Com muita estima e consideração
Professor Rui Chamusco / Coordenador João Moniz Sobral
27.03.2025, quinta– A Elisa
A menina Elisa é a filha mais nova de 14 irmãos da família Vitor, veterano da resistência de quem muito tenha falado nas minhas primeiras crónicas. A Elisa já não conheceu o pai porque ele faleceu antes ou pouco tempo depois de ela nascer. Devido à situação degradante em que esta família vivia – um verdadeiro caso social –
tentamos logo resolver alguns problemas, através da angariação de meios económicos que permitissem a construção de uma casa digna para habitação. Conseguimos também que quatro dos seus filhos fossem apadrinhados por sócios da Astil. E foi sempre nossa preocupação que as crianças em idade escolar frequentassem a escola.
Este ano, logo quase no início da minha estadia, os padrinhos da Elisa enviaram um donativo bastante generoso, e por isso a Elisa foi convocada (eles habitam aqui em Ailok Laran) para vir receber o donativo. E a menina(já vai a fazer 9 anos no mês de Junho) apareceu ao final da tarde. Limpinha e bem vestida(creio que o vestido foi alugado para a ocasião). E, perante a pergunta que lhe fiz “em que classe andas na escola?”, a Elisa, triste, respondeu: “Eu não vou à escola”. Parece que explodiu em mim uma bomba. “O quê? Esta menina não anda na escola? Então não se entrega o donativo enquanto este assunto não for esclarecido e resolvido.” E lá fui eu e o
Eustáquio a casa da família Vítor, ver o que se passava. O irmão mais velho, José, explicou então que a Elisa ainda não foi matriculada na escola porque não tem a certidão de batismo. Em Timor Leste, a certidão do batismo é um documento oficial, que substitui a certidão. E não vale a pena fazer mais perguntas, porque todas as respostas que nos possam dar não conseguirão justificar a negligência desta gente.
Ainda lhes disse que, se isto fosse em Portugal era a polícia que vinha ter com eles, porque é um crime privar uma criança de frequentar a escola. “Então nós (eu e o Eustáquio) vamos tratar disto”. E lá fomos nós ao Cartório Paroquial da Sé tentar obter
a certidão de batismo. Foi uma trabalheira, porque os nomes não batiam certos. Nós pensávamos que a filiação era o pai e a mãe que tods conhecemos, mas afinal, o José e a Rita (o irmão e a cunhada) perfilharam a menina que já foi batizada depois de o verdaeiro pai morrer. Ao fim de alguns dias ou semanas lá conseguimos a dita certidão que nos vai permitir deslocarmo-nos até uma escola das redondezas para matricularmos para matricular a Elisa.
28.03.2025, sexta – A matrícula da Elisa
Logo de manhã, a Marcelina (Akai) telefona ao Eustáquio para dizer que espera por nós às 10 horas para ir connosco à Escola de Hudi Laran falar com o diretor sobre a matrícula. Passamos pela casa do Vítor para apanhar a Elisa, que depois de algum tempo de espera porque tinha de se preparar, lá vem a menina. Enquanto esperávamos, algo nos chamou a atenção. Primeiro o filho Valente, que nós ajudamos a reintegrar na escola há alguns anos mas sem grande êxito porque só estudou até ao nono ano.
Educadamente veio cumprimentar-me, e depois tentou disfarçar ou encobrir o que se estava a passar. Junto a ele estava um grupo de jovens, alguns já casados e com filhos, bêbados que nem um cacho, alguns já na ressaca e sem saberem o que diziam ou faziam. Tinham junto deles um garrafão de 5 litros de sabu. Uma bebida alcoólica extraída das palmeiras parecida com a aguardente. Começaram a beber ontem à noite e esta manhã ainda tinham lá uma pinguinha. Hoje é para a ressaca, também ela cheia de peripécias que nem vale a pena contar.
“O timorense é assim. Tem dinheiro e gasta logo em cigarros e sabu”, diz o Eustáquio. É pena que assim seja. Há tanta coisa a emendar por aqui!...
Mas vamos ao que interessa. Chegados à escola, fomos recebidos pelo diretor que logo nos disse: ”Agora já é tarde para fazer a matrícula porque os dados desta escola já foram enviados para o ministério da educação".
Então pedimos que a Elisa, mesmo sem estar matriculada, pudesse informalmente ir a esta escola para conviver e assistir às aulas e para o começar logo no início. O diretor aceitou, e ficou de falar com uma das professoras.
E assim a Elisa, na próxima segunda feira já pode ir à escola. Depois, lá fomos nós comprar duas fardas, meias e sapatos, mochila e material escolar para que a Elisa se sinta integrada neste novo mundo, no seu ambiente escolar. Que este seja o princípio de uma nova vida…
(Revisão / fixação de texto para publicação no blogue: LG)
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Notas do editor:
(**) Vd. postes de:
30 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26630: Facebook...ando (70): Timor-Leste: 1º ministro Kay Rala Xanana Gusmão faz visita surpresa à ESFA - Escola São Francisco de Assis, nas montanhas de Liquiçá, em 22 de março - Parte I
31 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26631: Facebook...ando (71): Timor-Leste: 1º ministro Kay Rala Xanana Gusmão faz visita surpresa à ESFA - Escola São Francisco de Assis, nas montanhas de Liquiçá, em 22 de março - Parte II