segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17896: Notas de leitura (1007): Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Deste batedor de sete léguas, um andarilho que descobre em qualquer lugar convivas e antigos combatentes, já lhe fiz o retrato quando saudei o seu primeiro volume: "Regista os desenrascanços na cozinha, os apetites sexuais, as risotas sobre o linguajar do Norte, pena é que um leitor impreparado no jargão não conheça o significado de morcão, isto é não sabe se estamos a falar num atrasado ou num javardo. José Ferreira faz desfilar jovens que percorreram quartéis e partiram a descobrir mundo". Alguém também já o saudou pelo humor, pelo sarcasmo e pelos condimentos da solidariedade, é um narrador de mil e uma histórias onde cabem manhosos, espevitados, personagens de Camilo Castelo Branco.
Não esteve na operação Bola de Fogo, um dos eventos mais trágicos da guerra da Guiné, o levantamento de um quartel chamado Gandembel, mas tem fibra para homenagear aqueles mártires.
Que mais memórias não te faltem, José Ferreira, um abraço do
Mário


Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira

Beja Santos

Entende-se por literatura da guerra colonial o subgénero literário onde se agrupam romances, contos, novelas, poesias, peças de teatro, ensaios históricos, antologias, biografias, registos fotográficos, memórias, diários, e algo mais, escritos de 1961 à atualidade e cujo tema nuclear tem como palco um dos três teatros onde essa guerra aconteceu. Não é novidade para ninguém que começa a haver uma zona de fricção entre esta literatura e uma outra que tem a ver com escritos elaborados por quem regressou de África ou seus descendentes. A guerra e o combatente dão a placa giratória e daí, mesmo nos livros de caráter memorial, o autor poder falar da sua infância e origens, a preparação, a viagem, episódios da comissão e acontecimentos do regresso. É importante registar que no mercado livreiro proliferam obras com saudades de África enquanto a literatura da guerra gira cada vez à volta das memórias. Talvez se perceba porquê. O combatente caminha para os setenta ou é já um septuagenário consolidado. Tem disponibilidade para juntar peças, já não guarda rancores, constitui amizades, encontra-se regularmente em tertúlias com quem combateu a seu lado, aliás é nesses espaços de convívio que cada um conta o que pensa que aconteceu. Depois, há salas de conversa, como os blogues ou as digressões pelo Facebook, Twitter e Instagram, redes sociais de boa ou belicosa convivência, vêm mais elementos à tona em dado momento organiza-se uma trama e temos um leque de memórias e muita vontade em publicá-las.

“Memórias Boas da Minha Guerra” é o segundo volume de alguém que fez parte de uma companhia de intervenção que atuou em mais de metade de todo o território da Guiné, regressou, manteve-se convivente e lendo os seus escritos fica-se com a ideia que o furriel Silva ou José Ferreira da Silva ou o escritor José Ferreira tem uma enorme sede de camaradagem, conserva um rol de episódios pícaros, burlescos, misturados com estúrdia e passagens por casas de gente mal-afamada. E sempre que vai ao passado sentimos, como num espelho estilhaçado, que ele nos dá uma imagem de gente da nossa geração que cresceu na guerra, foi alvo de endurecimentos vários e em encontros casuais ou programados, os retratos compõem-se e o leitor atento fica com mais imagens desse Portugal de 1950 e 1960, nomeadamente na região Norte. Tenho para mim que é deste modo que ganha a leitura deste segundo volume das memórias de José Ferreira, recentemente publicadas pela Chiado Editora.

Tem muita ironia, em lugares de amenidade como Dunane pode gerar-se uma situação crítica, a memória salta até ao Porto e visita-se uma zona de meretrício na Rua Escura, começa-se a falar no morcon e depois temos uma galeria de retratos, com o Geninho à cabeça:  
“Parecia um miúdo da escola primária. Tinha 1,37 m de altura. A espingarda Mauser, pousada, com a coronha no chão, à sua frente dava pelos olhos. O curioso é que ele era um jovem socialmente bastante desenvolvido e de trato muito agradável. Quando o mandaram embora, ele lamentava-se dizendo: 
- Vou triste, porque até gosto disto e gostaria imenso de servir a minha Pátria”.
Há os molengões, os ronceiros, gente com uma perna mais curta dois dedos do que a outra, gente que sonhava alto, dando um espetáculo que atraía a caserna por inteiro…

E há o amontoado de situações inesquecíveis como os bolos de bacalhau à moda de Catió, o Chico de Alcântara, o cabo Felgueiras, aquele dia 26 que se festejava com um casamento, imagine-se, num quartel em plena guerra, um a fazer de padrinho, outro de irmão da noiva, os noivos em toda a sua alvura e pujança, o sacristão, o moço da água benta e até o fotógrafo.

Ficamos a conhecer histórias de gente que passou uma infância na miséria e até se abre o pano para um palco de amores camilianos, caso do Diogo de Carvalho que se ofereceu para a tropa, havia a história do comportamento do pai que depois de viúvo engravidou uma jovem casada que trabalhava lá em casa, o Diogo adorava a Guidinha, filha de boas famílias, chegaram a brincar ao sexo sem consequências, depois a Guidinha desapareceu, nem às festas da Senhora da Mó veio, anos mais tarde Silva e Diogo encontram-se, Diogo licenciara-se em Coimbra, seguira a carreira da magistratura e depois falou-lhe da Guidinha:
“Lembras-te daquela história da minha paixão? A miúda sempre seguiu para freira. Chegou a diretora de colégio. Recentemente, quando faleceu o tio padre Benjamim houve um funeral especial, que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade quis ver a Guidinha durante o velório”.

Como as memórias são como as cerejas, José Ferreira leva-nos a Crestuma junto a rio Douro, apresenta-nos a terra onde vive, vemos a velha fundição de Arcos de Ferro e Verguinha, fundada em 1793. Mais tarde (e até hoje) Companhia de Fiação de Crestuma, e isto para dizer que após independência da Guiné veio uma equipa de guineenses para aprenderem a trabalhar com teares e outras máquinas, havia a promessa de construir uma fábrica em Bolama. O projeto caiu na água. E após mais umas histórias entremeadas de estúrdia e de que de se guardam boas recordações até ao presente, chegamos à operação Bola de Fogo, a construção de Gandembel onde a CART 1689, a que José Ferreira pertenceu, teve papel primordial na fase de arranque. Ele estava de férias nessa altura mas homenageia os seus camaradas cozendo várias histórias.

Em Abril de 1968 foi lançada esta operação para a implantação de um aquartelamento no corredor de Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana, intervieram para além da CART 1689 duas companhias de comandos e outras unidades com destaque para a CCAÇ 2317, a quem coube o fel mais amargo. É uma sequência trágica de tiros de obuses, minas, fornilhos, abertura de um quartel dentro da natureza bravia, sem réstia de população, houve que fazer limpezas com motosserra e passar a ser atacado a qualquer hora do dia, são esses os relatos pungentes que José Ferreira organiza, ressalto o sofrimento físico, a violência das mortandades, não faltam cenas horríveis com pedaços de carne humana e lembra-se o alferes Monteiro que já tinha concluído a sua comissão e que se ofereceu para este último serviço:
“No início desta reta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas estava uma perna de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada da copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo louro à altura de um metro e quarenta do chão. O resto do tronco até ao chão era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e louro do pelotão”.

É este o remate trágico de um livro inconfundível de memórias que começa em aldeias remotas, em jovens cheios de sonhos que aprenderam a crescer na picada e nos quartéis do fim do mundo e hoje contam à lareira aos netos histórias inacreditáveis que a voracidade mediática e velocidade do nosso tempo reduziram a narrativas do fantástico, uma espécie de contos de fadas dentro de guerras cujo sentido escapa às novas gerações.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17887: Notas de leitura (1006): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (5) (Mário Beja Santos)

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