1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do
BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
Pequeno texto referenciado no meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ/BISSAU 1973/1974"
Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por
uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente
ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã
onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.
A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa.
Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular,
para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia
partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar
dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos
camaradas imagens por todos certamente relembradas.
Angola, Moçambique e Guiné, hoje países
independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que
vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores
evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo
destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.
A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco
sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam
as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não
olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos
congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era
transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.
Aportei em solo guineense cerca das 14 horas
locais no dia 2 de agosto de 1973. Ao descer do avião deparei-me, de
imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor
escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares
lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O
clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou,
todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante,
assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num
território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível
realidade”.
Os primeiros contactos com os nativos
transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles
tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o
Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso
a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que
dantes havia idealizado.
Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as
dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal.
Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão
autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava
fronteiras aéreas a caminho da guerra.
Todas as histórias têm um vínculo que nos
transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado
Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei
serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta
atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a
sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos
diametralmente oposto: a guerra e a paz.
A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos.
As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um
tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade
que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN
(inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram
evidentes nos campos de batalhas.
Do conflito da Guiné há retratos que ao longo
dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que
relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente
aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o
contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das
Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha,
nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade
de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às
forças lusitanas.
Teoricamente seria essa a intenção dos homens de
Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito,
mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam
ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a
guerra operacional dos galões amarelos.
Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta.
As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a
guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a
forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa
perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.
Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer,
faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante
a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram
dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se
cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor
individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela
dureza.
Sabe-se que foram muitos os que morreram no
palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram,
felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje
padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.
O stress de guerra é há muito
uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de
dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas.
Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores
herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras
memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes
de autêntico desespero.
Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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