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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25403: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVIII: a versão do cor inf António Vaz Antunes (1923-1998), na altura comdt interino do COMBIS ( Memorando digitalizado e transcrito pelo seu filho, engº Fernando Vaz Antunes)



Guiné > Bissau > 1974 > O cor inf  António Vaz Antunes (à esquerda, na imagem) com o gen Bettencourt Rodrigues, e outros oficiais numa visita do Comandante-Chefe a uma unidade em Bissau. Fotografia do arquivo pessoal do Coronel António Vaz Antunes.


Guiné > Região do Oio > Farim > 1974  > O cor inf António Vaz Antunes com militares e população local. Fotografia do arquivo pessoal do coronel António Vaz Antunes.

Fotos (e legendas): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Cópia da primeira metade  da folha 1, do documento manuscrito do cor inf António Vaz Antunes, "Memorando dos acontecimentos de Bissau", datado de Lisboa, 30 de abril de 1974, e constituído  por 9 folhas, numeradas.

Transcrição da responsabilidade do seu filho, engº  Fernando Vaz Antunes,  que digitalizou e facultou o documento ao Luís Gonçalves Vaz, para divulgação no nosso blogue (*). 

Nos 50 anos do "golpe militar de Bissau" (**), voltamos a reproduzir a versão daquela oficial superior, que se solidarizou com o gen Bettencourt Rodrigues na manhã de 26 de Abril de 1974: na altura, era adjunto do Comandante do CTIG e Comandante interino do COMBIS (Comando da Defesa Militar de Bissau), bem como Inspetor do CTIG.

O nosso especial agradecimento a ambos, filhos de militares com brilhantes carreiras, pelo seu contributo para a preservação e divulgação de documentos relevantes, como este, para a historiografia da presença portuguesa na Guiné, e em particular para a nossa historiografia militar, relativa ao período de 1961 a 1974:

Sendo ambos filhos de militares que serviram a Pátria no TO da Guiné, querem também, e com toda a legitimidade, homenagear e honrar aqui a memória dos seus pais:

(i)  Fernando Vaz Antunes, engenheiro (passou  pela Academia Militar, e vivia em em Mafra, em 2014 de acordo com a sua página no Facebook);
  
(ii) Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande,  professor do 2º/3º ciclos do ensino básico em Vila Verde,  vive em Braga,  filho do  cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG, 1973/74) (1922-2002); tinha 13 anos e vivia em Bissau quando se deu o 25 de abril de 1974, que derrubou o regime do Estado Novo.

 

Golpe Militar de 26 de Abril de 1974 no TO da Guiné  > “Memorando dos acontecimentos de Bissau” (Digitalização e transcrição do manuscrito, e notas: Fernando Vaz Antunes; notas complementares: Luís Gonçalves Vaz)


Pelo cor inf António Vaz Antunes [1923-1998]

Funções:

Desde 24Mar1974 – Inspector do CTIG | 13Abr1974  – Adjunto do Cmdt do CTIG para parcial substituição do Brig. 2º Cmdt [1] , de licença; Cmdt intº do COMBIS por licença do Comandante

Sequência cronológica

24Abr1974

Considerando que 26 era feriado em Bissau, e para aproveitamento de tempo, solicitei à Chefia Srvc Transportes passagem para Bolama, a partir das 09:30

Planeei assistir às cerimónias mais significativas de homenagem a Honório Barreto e seguir depois para Bolama, em visita ao BArt [2] em IAO.

25Abr

Conhecimento por camaradas, do Movimento das Forças Armadas em Lisboa: através da BBC ao fim da tarde, depois de actividades várias no CTIG e COMBIS, tive conhecimento do triunfo do Movimento. 

Às 18:00 horas comuniquei à Chefia Srvc Transp para anular ida a Bolama.

22:00 horas – como de hábito, desloquei-me para o COMBIS para pernoitar, depois de ter recebido comunicação telefónica do Chefe do Estado Maior do CTIG [3] para recomendar ao pessoal de guarda a máxima atenção na vigilância com vista a garantir a segurança dos quartéis contra qualquer tentativa do IN.

À chegada ao COMBIS recebi a mensagem escrita que repetia a recomendação telefónica. Dei as necessárias instruções ao Oficial de Dia. 

Pouco depois o Oficial de Dia batia à porta do quarto para me prevenir de que a Emissora Nacional (Lisboa) ia transmitir uma mensagem do Movimento. Desloquei-me para o Bar, onde ouvi a mensagem na companhia do Oficial de Dia e mais 2 alferes.

Logo de seguida voltei para o quarto e pouco depois ouvi a repetição da mensagem, feita agora por emissor da Guiné e mais tarde repetida pelo PFA [Programa das Forças Armadas] , vulgo “PIFAS”.

26Abr

Às 08:00 dirigi-me para a Praça Honório Barreto, de uniforme nº 1 (branco), acompanhado do Cor Lemos [4]

Terminada a cerimónia, voltei ao quarto e mudei de farda.

09:45 – Chegada ao QG/CCFAG para tomar parte no briefing diário. Enquanto aguardava no local habitual, juntamente com outros oficiais – nomeadamente Cor Vaz, Cor Pilav Amaral Gonçalves, Cmdt Ricou e Comodoro Brandão [5] –, o Cmdt Lencastre chegou conduzindo um Volkswagen muito apressadamente, travou bruscamente e dirigiu-se a correr ao Comodoro a quem comunicou qualquer coisa, de que eu só percebi “vêm aí pára-quedistas”. 

O Comodoro não reagiu, o Cor Amaral Gonçalves pareceu-me surpreendido e eu perguntei ao Ricou, também impassível, o que se passava.

Este informou-me que eram os pára-quedistas que estavam a cercar o QG. Perguntei qual a intenção, respondeu não saber. Perante a impassibilidade destes, dirigi-me à sala de reuniões para onde tinha visto entrar o Sub Chefe do Estado Maior – Ten Cor Monteny [6] –, disse-lhe o que se tinha passado e ele respondeu-me que não sabia de nada. 

Respondi que, nesse caso, o nosso General [7] também não devia saber. Confirmou-me que não. Nessa altura ordenei-lhe que fosse avisar o nosso General, o que se prontificou a fazer, tendo saído para o efeito [8]. 

Momentos depois o grupo de oficiais, que estava fora, dirigiu-se para a sala de reuniões. Fiz o mesmo e cada um ocupou o lugar habitual.

Faltavam o General Cmdt Chefe, o Brigadeiro Adjunto [9] e o CEM/QG/CCFAG [10]. Não estranhei, por supor que estariam ocupados – e não era a primeira vez que o Comodoro presidia à reunião.

Logo que todos tomaram lugares – e havia muito mais oficiais que era habitual em briefing de rotina, especialmente considerando que era feriado –, adiantou-se para a frente o Ten Cor Mateus da Silva [11] que pedia atenção e disse: 

“A Comissão na Guiné do Movimento das Forças Armadas, que está aqui presente, entendeu que o Sr. General Bethencourt Rodrigues não podia continuar no desempenho de funções. Foi-lhe dado conhecimento disso e destituiu-o. Em face disso nomeia o Sr. Comodoro, Comandante Chefe, e eu, que já desempenhava funções de direcção no Serviço das Obras Públicas, passo a desempenhar as de Secretário Geral” [12].

O Comodoro fez um gesto afirmativo de cabeça e disse: “Bem, vamos ao briefing!”. 

Houve uns curtos momentos de silêncio e passividade que me fizeram crer que só eu fora surpreendido, pelo que me levantei e pedi licença ao Comodoro para dizer: 

“Para mim é surpresa o que acabo de ouvir. Tenho uma missão de responsabilidade da defesa de Bissau. Desejo identificar os membros da Comissão da Junta que tomou tais decisões e conhecer a minha posição!” 

O Comodoro propôs que falássemos depois do briefing. Insisti para que se não adiasse porquanto não conhecia as novas estruturas criadas.

Além disso,  em 33 anos de Oficial nunca se me tinham deparado tais procedimentos dentro das estruturas militares, pelo que pedia o esclarecimento da situação. 

Enquanto falava, um capitão tentou intrometer-se, no que o impedi [13]. Mas logo que terminei, ele pediu licença ao Comodoro e sugeriu “que o senhor Coronel acompanhasse o Sr. General para Lisboa, no Boeing que o transportaria nessa tarde”.

Fiquei perplexo, o Comodoro não respondeu, mas fitava-me como esperando a minha reacção, e então retorqui: 

“Lamento que seja posto na situação de aceitar uma sugestão apresentada por um Capitão que não conheço, mas se o Sr. Comodoro a aceitar eu aceito-a também!”.

 O Comodoro respondeu: “Sim, é melhor, vai com o Sr. General para Lisboa!”. 

Perguntei se podia contactar com o Sr. General, a fim de lhe perguntar se dava licença que o acompanhasse. Perante resposta afirmativa, pedi licença e retirei-me. Dirigi-me de imediato ao gabinete do Comandante Chefe e perguntei ao Sr. General Bethencourt Rodrigues se autorizava que o acompanhasse no avião que o transportaria para fora de Bissau. 

Respondeu-me que não tinha que se pronunciar sobre isso porque fora forçado por um grupo de oficiais, que invadiram o seu gabinete, a abandonar o cargo. Esclareci que apenas pedia licença para o acompanhar, porquanto a ordem para embarcar tinha-me sido dada no briefing nas circunstâncias que atrás referi.

Entretanto entraram no gabinete o Comodoro, o Cor Vaz, o Cmdt Ricou e o Cmdt Lencastre. Após breves palavras que o primeiro disse ao Sr. General, em termos de lamentação (que eu não entendia… ), esclareci-o que o Sr. General autorizava que eu o acompanhasse. Perguntei por guia de marcha, e disse-me que não era precisa. Indaguei sobre hora e local de reunião e fui informado que podia reunir-me no Palácio, ao Sr. General, até às 13 horas. 

Logo de seguida – cerca das 10:15 –, dirigi-me ao COMBIS para recolher os meus haveres pessoais e informar o meu Chefe do Estado Maior, de que devia entrar em contacto com o Cmdt Chefe para lhe definir a situação e missões.

Quando chegava à entrada do Depósito de Adidos, acesso ao COMBIS, estava a formar junto à porta, muito apressadamente, um Pelotão do Batalhão de Comandos Africanos, transportado para ali numa viatura pesada estacionada em frente. O Pelotão estava completamente armado, inclusive com LGF e armas automáticas, equipado e municiado.

Deduzi que seria por minha causa, mas nem parei nem interferi. Rapidamente reuni os meus haveres após o que chamei o Ten Cor Altinino e o Cap Bicho para os informar que deixava o COMBIS, mas não tinha dados que me permitissem transmitir o Comando.

Cerca das 12:45 cheguei ao Palácio com a minha bagagem. Cerca das 14h, quando vi chegar a guia de marcha para o Brig. Leitão Marques e Cor. Hugo Rodrigues da Silva, telefonei ao Cor Vaz, Chefe do EM/CTIG solicitando uma guia também para mim. Às 15:30 o Cor Vaz e o Ten Cor Monteny disseram-me que o Comodoro não assinava a guia e não autorizava que eu saísse.

Surpreendido por esta nova versão, procurei o Comodoro para que me esclarecesse. Estava num dos corredores do Palácio para tomar parte na cerimónia de tomada de posse do novo Governo da Província. Respondeu que não estava na disposição de autorizar que saísse quem pedisse. Lembrei-lhe que eu não o pedira – ele é que o ordenara. Reagiu atirando-se para um sofá e declarando que se quisesse embarcar que embarcasse, mas que não me passava guia.

Mais tarde, já no aeroporto, pedi-lhe para me atender em particular, e solicitei que recordasse o que se tinha passado e a ordem que me dera, e a situação em que me colocara na presença de dezenas de oficiais. Decidiu então que me enviaria a guia pelo correio e autorizou que embarcasse.

Chamei o Cor Vaz e o Ten Cor Monteny e, estando também presente o Cmdt Ricou, o Comodoro deu ordem ao Cor Vaz para me enviar a guia para o DGA [14] no dia seguinte.

Nessa mesma ocasião, disseram (não me lembro quem) ao militar que fazia policiamento à porta de passagem para a gare, que eu podia embarcar.


(24-26Abr1974) – Cor António Vaz Antunes

Fernando Vaz Antunes, documento inédito, cedido pelo autor ao Luís Gonçalves Vaz e ao blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné

Notas de AVA/FVA/LGV:

[1] - Brigadeiro Octávio de Carvalho Galvão de Figueiredo, 2º Comandante do CTIG e, por inerência, Comandante do COMBIS (Comando da Defesa Militar de Bissau).

[2] - Batalhão de Artilharia nº 6520/73, mobilizado pelo RAL5-Penafiel e aerotransportado entre 01 e 04Abr74, do AB1-Portela para a BA12-Bissalanca, de onde marchou para o CIM-Bolama.

[3] - Coronel de cavalaria CEM Henrique Manuel Gonçalves Vaz (CEM/QG-CTIG desde 07Jul73 até 14Out74)

[4]  -«A cerimónia começou mais tarde porque se aguardou, em vão, a chegada do Gen Cmdt Chefe. A dada  altura, por decisão do Comodoro Brandão que estava presente, deu-se início à cerimónia com uma alocução  do então Maj de infantaria Alípio Emílio Tomé Falcão, Comissário Provincial da MP na Guiné.» [AVA]

[5] - António Horta Galvão de Almeida Brandão, Comandante do ComDefMarG (Defesa Marítima da Guiné).

[6] - António Hermínio de Sousa Monteny, Tenente-Coronel CEM

[7] - José Manuel de Bethencourt Conceição Rodrigues, desde 29Set73 Governador e CCFAG.

[8] - «Houve entretanto um curto impasse: o Monteny continuava a escrever uns papéis, que eu lhe retirei da secretária repetindo-lhe que fosse de imediato – e ele foi. Isto passou-se na sala, enquanto o resto do pessoal estava fora. Quando o Monteny saiu, vim atrás dele, mas ao chegar à porta vi que os que estavam fora, incluindo o Comodoro, vinham entrando para o briefing, e eu fiz o mesmo, enquanto o Monteny descia o jardim.» [AVA]

[9] - Brigadeiro Manuel Leitão Pereira Marques.

[10] - Coronel CEM Hugo Rodrigues da Silva. [O QG/CTIG era o Quartel General do Exército (situado nas instalações militares de Santa Luzia), enquanto o QG/CCFAG era o Quartel General de todas as Forças Armadas em serviço naquele território (situado no antigo Forte da Amura, mesmo em frente ao cais de Bissau). O coronel Henrique Gonçalves Vaz, CEM/CTIG na altura destes acontecimentos, irá desempenhar as funções de Chefe do Estado-Maior do CTIG/CCFAG (Comando Unificado), após este Golpe Militar.]

[11] - António Eduardo Domingos Mateus da Silva, TCor Engº Trms, desde Jul72 Comandante do AgrTmG.

[12] - «O Mateus da Silva propôs-se ocupar os cargos de Secretário Geral e Encarregado do Governo – o que veio a acontecer –, tendo sido “empossado” cerca das 12h quando nós estávamos ainda no Palácio do Governo (e residência do Governador).» [AVA]

[13] - «O Capitão era o José Manuel Barroso, miliciano, que dirigia o semanário “Voz da Guiné” (e mais nada); era casado com a “fulana” que estava em Bissau para estudar a instalação da Universidade de Bissau, recebendo por isso 15 contos X mês … .» [AVA]  [equivalente, a preços de hoje,  a 2860 euros, editor LG]  

[14] - Depósito Geral de Adidos (Calçada da Ajuda, em Lisboa).


Fonte: © Fernando Vaz Antunes (2014).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Gonçalves Vaz / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 _______________

Notas do editior LG:

(*) Vd. postes de: 

1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes(1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I

1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13079: O golpe militar de 26 de abril de 1974no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes(1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte II

2 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13080: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): III (e última) Parte   

(**) Vd. último poste da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25388: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVII: O meu pai, cor Henrique Gonçalves Vaz, que não pertencia ao MFA, deu um abraço de despedida, apreço e respeito ao seu Com-Chefe no momento da sua destituição (Luís Gonçalves Vaz)


(***) Nota de Luís Gonçalves Vaz:
  
(...) António Vaz Antunes (1923-1998)  [resenha biográficas mais completa: consultar também portal Ultramar Terrweb]

(i) nasceu na freguesia da Mata, Concelho de Castelo Branco, em 21 de junho de 1923;

(ii) faleceu em 15 de outubro de 1998;

(iii)  frequentou a Escola do Exército, onde se formou como oficial de Infantaria do Exército Português; 

(iv) no ano de 1959 realizou um estágio de oficiais do Exército Português, junto de tropas francesas na Argélia;

(v) passou pelo CIOE / L amego, onde foi 2º comandante; 

(vi) passou também por por Angola onde foi 2º comandante do Batalhão de Caçadores 185/RMA (1961 e 1962);  e por Moçambique, onde foi 2º comandante do Batalhão de Caçadores 1918/RMM (1967) e comandante do Batalhão de Caçadores 17/RMM (1967 a 1968);

(vii) no CTIG, foi comandante do Batalhão de Caçadores 4512/72/CTIG (1972 a 1975);

(vii) neste teatro de operações, e na altura a que se reportam os acontecimentos relatados no “manuscrito” aqui publicado, o Coronel António Vaz Antunes era Adjunto do Comandante do CTIG e Comandante interino do COMBIS (Comando da Defesa Militar de Bissau), bem como Inspetor do CTIG;

Para que se perceba bem, este oficial tinha nesta altura, uma missão de muita responsabilidade na defesa militar de todos os quarteis no “perímetro militar de Bissau”, mesmo assim na reunião relatada no “documento histórico”, foi afastado destas funções pelo MFA da Guiné. 

Chamo à atenção que nesta altura não estavam em funções os 1º e 2º Comandantes do CTIG, pois encontravam-se de licença, o que elevava a responsabilidade deste oficial no quadro de comandos neste TO (Teatro de Operações). Pode-se ler,  por exemplo, no seu manuscrito, que no dia 25 de Abril recebeu por telefone e por mensagem indicações do CEM/CTIG, coronel cav Henrique Gonçalves Vaz, “recomendações para que o pessoal de guarda tivesse a máxima atenção na vigilância com vista a garantir a segurança dos quartéis contra qualquer tentativa do IN”, a situação era de facto explosiva, vulnerável e muito sensível (...)

sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25382: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVI: o golpe militar de Bissau


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. 

Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza .

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Antiga página de rosto do  Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social  (#) publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 


1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida  [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da SilvaCoronel Matos Gomes,   José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]

Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt  (ou Bettencourt) Rodrigues, e  concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau. 

Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra.  E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.

Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:

  • Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
  • Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
  • José Manuel Barroso [n. 1943]  : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
  •  Florindo Morais  [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida

2.  O Golpe Militar de Bissau (##)

Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)

Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)

 [...] General Mateus da Silva: 

Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades. 

Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido,  na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.

Luís Salgado Matos: 


Qual era o papel do general Bettencourt Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar? Tinha alguém em quem tivesse confiança?  


Coronel Matos Gomes: 


Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa. 


Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior. 


Para os comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género: «Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não saber também coisas [concretas] essenciais. 


José Manuel Barroso: 


 [...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava. 


Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução. 


Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.» 


Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.


General Mateus da Silva: 


[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa. 


Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa. 


Às 5 ou 6 da manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido. 


Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no dia 25 de Abril.


Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos). 


E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!» 


Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa. 


Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra. 


Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que,  apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído. 


O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe: 


«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?» 


O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA. 


O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera de receber instruções, e passou toda a noite assim. 


No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer. 


E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar. 


Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer que aderia ao MFA. 

  [...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe. 


O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe. 


Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta. 


Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos. 


Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete… 


Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro. 


O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim: 


«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.» 


Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada. 


O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:


 «Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.» 


E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues: 


«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».


 Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.  


O general Spínola já deu uma entrevista a dizer que o Bettencourt Rodrigues foi preso na Guiné, quando a verdade é que quem mandou prender o Bettencourt Rodrigues foi ele, Spínola. Porque quando Bettencourt chegou a Cabo Verde, teve de esperar por ligação para Lisboa, e teve de ficar um dia, ou coisa assim, e os elementos de Cabo Verde agitaram-se, falaram para Lisboa. E então veio um telegrama de Lisboa, da JSN [JUnta de Salvação Nacional ] , a dizer que o general Bettencourt Rodrigues devia regressar a Lisboa, sob prisão.

Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…

Luís Salgado Matos: 


Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que ele responde?


General Mateus da Silva: 


Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer: 


«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.» 


Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]


Coronel Matos Gomes: 


Só houve três oficiais que se solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e, posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes. 


General Mateus da Silva: 


Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência. 


Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:


 «Se está solidário, saia!» 


Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade. 


Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.» 


Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à JSN. 


Manuel de Lucena: 

Da JSN, quem deu o aval à sua posse? 


General Mateus da Silva: 


Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro.  [...] (#)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)

 _____________

(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/UL

(##) Vd. também aqui o depoimento de J. Sales Golias [n. 1941] , ten cor > A descolonização da Guiné: Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra / Fórum dos Estudantes da CPLP, Coimbra, 30 de Abril de 2005 

(###) O Jorge Sales Golias  fala em onze:

Lista dos Oficiais revoltosos (##);

TCor Mateus da Silva, Engº Tm | TCor Maia e Costa, Engº | Maj Folques, Cmd | Maj Mensurado, Pára | Cap Simões da Silva, Art | Cap Sales Golias, Eng Tm | Cap Matos Gomes, Cmd | Cap Batista da Silva, Cmd | Cap Saiegh Cmd, (Africano) | Cap Ten Pessoa Brandão, Armada | Cap mil José Manuel Barroso
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25372: Os 50 anos do 25 de Abril (9): Honra a dois dos heróis que o país esqueceu, Salgueiro Maia e José Afonso (Juvenal Amado, ex-1.ª Cabo Condutor Auto da CCS/BCAÇ 3872)

Os Nossos Heróis

Muito se fala de heroísmo e acabamos por pensar neles em termos de perfil como ficam bem nas capas da revistas onde passam a ser ícones, admirados como exemplo como estrelas de cinema onde são glorificados. Olham a morte de soslaio com o cigarro ao canto da boca, compondo imagem de deixós-poisar tipo super-homem que só temia a criptonite.

De heróis fala história, pelas suas conquistas, pelos seus actos de bravura e pelo que deram aos impérios.

Esses heróis foram-se com o fim dos mesmos impérios, não poucas as vezes receberam os louros pelo que outros menos importantes fizeram, mas que não tinham estatuto para isso. Foram mais os esquecidos dos que premiados.

Mas os heróis que eu conheci eram jovens perfeitamente normais e que se olhassem para eles em nada se vislumbraria essa gesta guerreira. Não eram bons soldados e não eram exemplos de postura, alguns não sabiam ler e escrever para além do nome. Iam para o mato com pouca ou nenhuma vontade e, não poucas vezes, remoíam e praguejavam contra quem os obrigava a ir. Tinham medo? Ter medo é normal e a valentia só aparece quando o vencemos.

As razões porque rejeitaram um impedimento na cantina para ficarem com os seus camaradas de pelotão e o caso do meu camarada David Leão, que rejeitou a hipótese de não ser mandado para a Guiné por o irmão ter sido morto em combate em Angola, são uma daquelas coisas difíceis de explicar.

Será que as escolhas nos definem ou é irreverência, falta de bom censo ou ainda a curiosidade pelo caminho que temos pela frente?

Contaram-me que um capitão de uma companhia, condecorado por feitos em Angola, fugiu para o quartel quando os homens que comandava caíram numa emboscada onde morreram vários. Era um herói que quebrou?

O homem e as suas contingências.
Salgueiro Maia comanda uma coluna de blindados e soldados no Terreiro do Paço, no dia 25 de Abril de 1974
Foto de Eduardo Gageiro - Com a devida vénia a Visão

Durante aqueles anos morreram em emboscadas, minas e ataques de artilharia aos destacamentos. Também morreram de acidentes e hepatite bem como outras maleitas adquiridas lá.

Por muito que nos custe, depois do regresso morreram camaradas, que durante as suas comissões praticamente nunca saíram do quartel onde tinham impedimentos, que serve de prova que nós não fazemos o caminho mas o caminho é que nos faz a nós.

Mas voltamos aos que gostariam de ser glorificados e para isso até fariam o pino. Mas o herói é aquele que dá com a mão direita sem que a esquerda veja. Perdoem-me a utilização deste trocadilho normalmente usado para fins de caridade. Melhor, o herói age em prol dos outros com desprezo pelo seu bem estar físico, mas não pensa nisso. Dá o que tem, mesmo que lhe custe a vida para a qual não instituiu preço nem contrapartida.

Aproxima-se uma data que encheu Portugal de actos heróicos. Marcharam pela paz e derrubaram com risco da sua vida e carreira, contra um regime que nos tinha mandado para um atoleiro que custou tantas vidas e lágrimas.

Não actuaram sozinhos, outros durante anos combateram, sofreram nas prisões e morreram para abrir o caminho para uma realidade nova, longe do obscurantismo pequenino e castrador.

Libertaram outros heróis anónimos, deram a esperança daquela madrugada à esperança de um país sem grades e sem correntes.

Foram homens que não correspondiam a nenhuma matriz, mas que o coração excedia em muito a país que os viu nascer.
José Afonso
Com a devida vénia a TimeOut

A História dos países faz-se desses homens que um dia resolvem que têm outra coisa a fazer do que preservar a sua vida.

O 25 de Abril é um dia inesquecível, impar e nada do que disserem dele lhe retirará o brilho, quando uma nação inteira rejubilou com a liberdade alcançada.

Honra a dois dos heróis que o país esqueceu, Salgueiro Maia e José Afonso.

Viva o 25 de Abril
Juvenal Sacadura Amado
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Nota do editor

Último post da série de 11 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25369: Os 50 anos do 25 de Abril (8): Convite para a inauguração da exposição "O MFA e o 25 de Abril", amanhã, dia 12 de Abril, pelas 17h00, na Gare Marítima de Alcântara - Lisboa (Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Reformado)

Guiné 61/74 - P25369: Os 50 anos do 25 de Abril (8): Convite para a inauguração da exposição "O MFA e o 25 de Abril", amanhã, dia 12 de Abril, pelas 17h00, na Gare Marítima de Alcântara - Lisboa (Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Reformado)



1. Mensagem do nosso camarada Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Reformado, com data de 11 de Abril de 2024:

Meu caro Carlos Vinhal,
Venho convidar-vos a estar presentes na inauguração da exposição “O MFA e o 25 de Abril” amanhã pelas 17:00, na Gare Marítima de Alcântara, onde o nosso Blogue figura na Ficha Técnica, assim como o Miguel Pessoa e o Casimiro de Carvalho.

Quem não puder estar presente a exposição estará aberta até fim de Junho, acesso livre, nos horários do Convite.

Forte Abraço
Pedro Lauret

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25359: Os 50 anos do 25 de Abril (7): exposição em Santiago do Cacém, "Filhos da Terra, Soldados do Ultramar"

domingo, 24 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25302: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XII: Parece que houve um golpe de estado militar em Lisboa...

Mensagem: Relâmpago | Grupo Data Hora: 25Abr74 22h45 | De: Com-Chefe | Para: Geral (CTIG )

Fonte (e legenda):  © João Dias da Silva (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar (Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1.  Do poste P2939 (*), transcrevemos um excerto das notas pessoais do João Dias da Silva (**), ex-alf mil op esp, CCAÇ 4150 (Guidage, 1973/74):

(...) 25 de Abril de 1974

 Parece que hoje houve um Golpe de Estado Militar em Lisboa.

Passámos todo o dia à volta do rádio, ouvindo as edições especiais da BBC em língua portuguesa, a tentar saber algo sobre o sucedido.

Por enquanto está tudo muito, muito confuso, pois todas as notícias são precedidas de "parece que" ou finalizadas por "não confirmado". 

Vive-se por aqui um certo estado de tensão por não se saber nada em concreto. Há que aguardar.

Pelas 22H45 chegou uma mensagem relâmpago confidencial do Com-Chefe Bettencourt Rodrigues) a informar que corriam notícias que o Governo de Marcelo Caetano tinha sido derrubado, mas que eram só boatos, com o seguinte texto: 

Mensagem: Relâmpago | Grupo Data Hora: 25Abr74 22h45 | De: Com-Chefe | Para: Geral (CTIG)

AGÊNCIAS NOTICIOSAS INFORMAM QUE GOVERNO PROFESSOR 

MARCELO CAETANO FOI DERRUBADO POR MOVIMENTO DAS 

FORÇAS ARMADAS.  NÃO RECEBIDA QUALQUER COMUNICAÇÃO 

OFICIAL.  ADMITINDO QUE IN POSSA TENTAR EXPLORAR 

SITUAÇÃO INCREMENTO SUA ACTIVIDADE SUBVERSIVA. TODOS OS 

COMANDOS  DEVEM ADOPTAR MÁXIMA VIGILÂNCIA E GARANTIR 

PRONTA  CAPACIDADE REACÇÃO. COMANDANTES UNIDADES SÓ 

DEVEM  RESPEITAR ORDENS QUE RECEBAM APÓS RIGOROSA 

AUTENTICAÇÃO  SUA ORDEM. AUTENTICADO.


Transcrição manual da mensagem original, em impresso normalizado, recebido em Guidaje. 

(...) 26 de Abril de 1974 – Farim embrulhou às 6h00.

Continuámos a aguardar com certa ansiedade notícias daquilo que se está a passar na Metrópole quer no RCP (emissor do Movimento das Forças Armadas – é agora a emissora oficial), quer na BBC.

O gen Spínola deu uma entrevista sintética. Saiu o 1.º comunicado  oficial com o programa. É sensacional, se for cumprido integralmente. A situação ainda não está bem definida. Aguardemos. 

sexta-feira, 22 de março de 2024

Q 61/74 - P25295: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (23): O fado de Rosemarie - II (e última) Parte

Travessia dos Pirinéus por imigrados portugueses. Maio de 1965.

Foto: © Gerald Bloncourt (1926 - 2018) >  Foto: cortesia de Le Blog de Gerald Bloncourt  > L'immigration portugaise. 


[O grande fotógrafo da imigração portuguesa foi condecorado em 19 de novembro de 2015 pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem do Infante Dom Henrique, grau Comendador. Na página oficial da Presidência da República pode ler-se, por ocasião da sua morte, a seguinte mensagem, com data de 30/10/2018: 

"Ao tomar conhecimento da morte de Gérald Bloncourt há um dever de memória em evocar o seu trabalho, que imortalizou a história da emigração portuguesa em França nas décadas de 60 e 70.

O fotógrafo francês foi uma das testemunhas do duro quotidiano dos compatriotas que viveram os primeiros anos da maior vaga de emigração para França, sendo simultaneamente amigo e companheiro de tantos portugueses que ali construíram o seu futuro.

Isso mesmo testemunhei em Champigny-sur-Marne, por altura das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2016, reconhecendo o seu espírito de missão pela defesa da dignidade humana junto da comunidade portuguesa, com o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique. "]



Contos com moral ao fundo > O fado de Rosemarie -  II (e última) Parte

por Luís Graça

 
A Rosemarie foi uma mulher destemida (ou até  corajosa) para a época: casada com um tocador de rabeca chuleira de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica, mas não desistiu da vida, do amor e dos seus sonhos.(*)

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, de educação católica tradicionalista, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola e depois no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir e ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas só e infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1969, quando partiu para França a salto. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos.

Em Cascais, estava longe da família e da terra, que já não era Cabeceiras de Basto, mas Resende… Tinha um dia de folga, que aproveitava para conhecer Lisboa e os arredores. Metia-se no comboio e desaguava no Cais do Sodré, cujas “luzes de néon” a atraíam, como à borboleta, mas onde nunca chegou a entrar em nenhum bar.

À meia-noite, o mais tardar, tinha que estar de volta a casa no dia de folga. E, depois, aquele era um mundo estranho e perigoso para uma rapariga de província, que fora parar a Cascais com cartas de recomendação de gente de bem.

Ainda se aventurou a ir, um dia, ao Bairro Alto dos fadistas, onde se dizia que se cantava o fado castiço, mas sentiu-se intimidada, com todo aquele corropio de gente, a sair e entrar de tipografias, redações de jornais, casas de pasto, tabernas, oficinas, lojecas e casas que pareciam de bonecas, com mulheres a assomar às "janela de pau", ou vagabundear pelas ruas.

Havia prostituição de rua, mas nada no entanto parecido com a que irá conhecer, uns anos mais tarde, na Rue de Saint Denis, em Paris, quando um dia lá for com o "seu" Antoine, e o seu mano que estava na Alemanha, só para ver aquelas pobres mulheres trajando ricos casacos de vison, umas, outras quase nuas...

Raramente via os patrões, lá no palecete de Cascais. Tinha "uma chefa que era de gancho” (sic), e que mantinha a criadagem na linha como na tropa. O seu dia a dia era passado no meio de tachos e panelas, na cave. A senhora, “que era do Norte”, apreciava o seu “arroz de anho no forno”, uma das suas coroas de glória culinárias… Mas a cozinheira-chefe, francesa, tinha ciúmes dela e não a deixava fazer grandes pratos, apenas o trivial, o pequeno almoço, o lanche, coisas ligeiras. Mas acabou por aprender, à socapa, uns pratos da cuisine française e começou a arranhar o francês… (Falava-se francês lá em casa, o patrão era de origem francesa.)

Já não se lembrava sequer do nome dos patrões, que eram gente "muito rica e muito fina", de famílias tradicionais, católicos, mas liberais e respeitadores do pessoal menor… Cultivavam, no entanto, muita distância social. Nunca se lembra, por exemplo, de ter entrado na sala de jantar, a não ser pelo Natal, em que senhores e criados consoavam juntos.

Os tempos que passou em Cascais, cerca de dois anos, eram sobretudo lembrados pela Rosemarie pela sua iniciação ao fado de Lisboa. Na escola de adultos, onde tirou a quarta classe, conheceu uma jovem fadista amadora que tinha ambições de concorrer à Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios.

À noite as duas cantarolavam uns fados no regresso a casa, já que moravam perto. Ficaram amigas mas a Rosemarie perdeu o seu contacto quando foi para França,  em 1969. Tinha para com ela uma dívida de gratidão, arranjara-lhe alguns discos e letras, da Amália, e da Maria da Fé, de quem a Rosemarie também era fã, até por ser uma mulher do Norte.

Logo no início, em meados de 1967, teve autorização de ir ao Cais da Rocha Conde Óbidos abraçar um dos irmãos que chegava da Guiné, depois de cumprido o serviço militar. Vinha “mais maduro, mais homem”, e confidenciou-lhe que tinha intenções de emigrar, talvez para a Alemanha, de comboio. Era só tratar do passaporte, que agora, com a tropa feita, não precisava de ir a salto. Tinham-lhe prometido um emprego numa fábrica de automóveis, mas precisava de “aprender a língua alemã, que era tramada”. E na realidade conseguiu ir para a Alemanha, logo em finais de 1967, mas teve de começar por trabalhar nas obras. Durante alguns anos, não se viram até que ele foi passar o Natal, com ela e o Antoine, em 1973.

Foi também por essa altura, por volta de 1968, que a Rosemarie começou a congeminar a ideia de ir para França viver e trabalhar. Mas só podia ir a salto... Sendo oficialmente casada, precisava de autorização do "cabrão do marido" (sic), o "chefe de família", ausente em parte incerta... ("o tocador de rabeca chuleira", como ela o passou a tratar depreciativamente,  depois que se separaram ao fim de um ano e tal de casados).

Por outro lado, as suas fracas economias não davam para “comprar a passagem”… Precisava de ter pelo menos uns 15 contos, para a viagem e para os primeiros tempos. (Nessa época, em 1969, era uma pequena fortuna, cerca de 5,2  mil euros, a preços atuais.)

Entretanto,  umas antigas colegas e amigas das Caldas de Aregos, em Resende, deram-lhe  notícias do Antoine Ben Oliel (ele usava  o apelido materno). 

Um dia ela  conseguiu o seu contacto. Escreveu-lhe uma carta, com letra  "bem  bonita" (... "sempre tive boa caligrafia"), e com algumas palavras simpáticas em francês (desculpando-se dos "erros de ortografia"), e mandou-lhe uma foto tipo passe.

Ele não lhe respondeu logo, mas na carta que ela irá receber,  passadas umas largas semanas, diz-lhe que, "sim, senhora, se lembrava dela, de Chaves, em 1958 ou 59, e que ia ver o que podia fazer por ela"... Mas acrescentava logo a seguir: " Sem papéis era mais arriscado, para mais sendo mulher. Mas prometia lembrar-se do seu caso e do seu pedido"...

Determinada a sair do círculo vicioso da pobreza e da solidão, a Rosemarie começou a preparar a "mala de cartão" e, um dia, com a desculpa de ir visitar a mãe,  “muito doente, p'ra morrer
”,  obteve autorização para gozar uns dias de licença, na terra.

Nunca mais voltou a casa dos patrões em Cascais. E uma semana ou duas  depois estava a atravessar os Pirinéus, escondida na mala do carro do Antoine.

Não lhe fez desconto nenhum, “o gajo” (como ela o tratava)!... E sabiam pouco um do outro. Mas deu conta que o Antoine se sentia atraído por ela... Na viagem, partilhada com mais gente (“rapazes novos, um ou dois deles fugidos à tropa”), foram pondo, lenta e discretamente, a conversa em dia. Ela, sempre muito faladora, “um livro aberto”, ele sempre muito calado, de óculos escuros, a cigarrilha ao canto da boca, do lado da cicatriz… E usava um chapéu preto à cobói, que puxava para a cara, a tapar-lhe os olhos…

Na presença de terceiros, o passador evitava ter com ela conversas mais pessoais. Respondia-lhe, quase sempre com monossílabos, os olhos postos na estrada, enquanto o Peugeot ia devorando quilómetros.

A cena mais caricata foi a passagem da Rosemarie no posto fronteiriço pirinaico, em Hendaia, que era pressuposto ser “da confiança do Antoine”.

Como era habitual, os homens que seguiam na viagem, apeavam-se uns quilómetros antes, ainda em território espanhol, e seguiam por um trilho, seguro, atrás do guia basco que trabalhava habitualmente com (ou para) o Antoine, que por sua vez os voltava a apanhar mais à frente, já em territ´orio gaulês. Tratava-se apenas de salvar as aparências, não fosse algum chefão aparecer por aquelas bandas sem avisar.

A Rosemarie foi poupada ao incómodo da travessia a pé, seguindo, deitada e tapada com um cobertor, na mala do carro do Antoine. À frente seguia um empregado do Antoine, com a carrinha de nove lugares, vazia. Cada passageiro transportava na mão as valises en carton, no trajeto a pé. Traziam o mínimo, uma ou duas mudas de roupa, calçado, farnel…

Habitualmente era o Antoine que conduzia a carrinha e naturalmente, era conhecido, e mais do que isso, “amigalhaço dos guardas fronteiriços” (a quem costumava deixar uns presuntos de Chaves ou até mas peças de caça). Há muito que fazia os postos fronteiriços de Hendaia e Irun, sendo conhecido como marchand d’art. Na realidade, também comprava e vendia velharias, antiguidades e móveis de estilo, abastecendo algumas lojas no Norte de Portugal e até na Galiza. Rentabilizava assim a viagem. Trazia tralha. E no regresso levava viande à canon, carne para canhão (como ele dizia, na galhofa, lembrando-se porventura dos seus duros tempos de legionário).

Mas daquela vez estava de serviço o “novato” de um agente que não conhecia o Antoine ou, pelo menos, não o reconheceu tout court... Mandou parar o carro e abrir a mala…

A Rosemarie não ganhou para o susto, mas de acordo com as instruções do Antoine, “não tugiu nem mugiu”… Tudo se resolveu num ápice quando o Antoine “puxou dos galões”, e falou no nome do “chefe”, seu velho conhecido do tempo da Legião…

Aliviados, seguiram a viagem, pela route nationale 10 (desgraçadamente também conhecida como cemitério dos portugueses), sem mais sobressaltos, até ao destino, que era… o famigerado bidonvillhe de Champigny.

A Rosemarie, ingénua (quando lhe convinha), nunca soube, ao fim destes anos todos, quais foram les frais de transport... Mas, nesse troço da viagem, já em território francês, ficou então a saber que o Antoine era viúvo e vivia num château, nos arredores da petite ville de A.... no Val-de-Marne.

Simpático, cavalheiro, sedutor,  ofereceu à Rosemarie uma cama num duplex, grande demais para um homem que vivia sozinho, e que era a única parte habitável do casarão, que em tempos devia ter feito parte de uma quinta, sacrificada à expansão urbanística… O chateau não era, afinal, o "castelo dos contos de fadas" que ela imaginara ao longo da viagem...

Passada uma semana ou duas, já dormiam os dois na mesma cama. E ela arranjou, também por convite do Antoine, um primeiro emprego no bistrot, “O Cantinho da Saudade”.

Num dos verões passados, anteriores à pandemia, apanhaste a Rosemarie particularmente bem disposta, a cantarolar um dos fados da Amália, a sua musa inspiradora. Não reconheceste de imediato nem a letra nem a música. 

 C'est le fado de Paris.  − respondeu-te ela.

(...) O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até o Sena se queixa de pena
Que o Tejo não quis sair de Portugal.

O fado veio a Paris,
Alfama veio a Pigalle
E até Saint-Germain-des-Prés
Já canta o fado em francês! (…)


Foi uma deixa para se  falar do bistrot do Antoine, que tinha nome português, “O Cantinho da Saudade”… lá na petite ville, a sudeste  de Paris, onde ambos viveram… 

Foi o seu primeiro trabalho, quando chegou a França em 1969: foi empregada de mesa e de balcão no bistrot que se tornara um local de encontro dos imigrantes portugueses da região, mas também de magrebinos, em especial de antigos combatentes da guerra de Argélia, os harkis… E a partir do momento em que começou a haver “fado ao vivo”, passou a ser também frequentado por alguns franceses, como os anfitriões da casa da Lagoa de Óbidos, que já eram conhecidos do Antoine, do tempo da Argélia.

Enquanto tu e a tua entrevistada tomavam café numa esplanada junto à lagoa (de Óbidos), puxaste a conversa para o Antoine… Querias conhecer melhor  o homem, de obscuro passado, que  levara a Rosemarie para França, a salto, em 1969,  e que iria mais tarde lançá-la na “vida artística”, como cantora de fado, depois de passar a  dormir com ela… na cama.

É uma outra história, longa e algo rocambolesca, com muitos "claros e escuros", e alguns silêncios que os entrevistadores (o português e o francês ) tiveram de respeitar.

A Rosemarie já o conhecia de Chaves. “Vagamente”, garantiu-te ela. “Ainda mesmo antes de casar com o tocador de rabeca chuleira ”… Já não podia precisar o ano, nem as circunstâncias, de resto “não era muito boa em datas”. Talvez nalgum baile ou nas festas da cidade. Alguém o terá apresentado à Rosemarie, na altura criada de servir, na cidade:

− Eu dava nas vistas… E ele tirou-me logo a 'fotografia', como vocês dizem em Portugal, quando falam de raparigas… Disse-mo talvez uns dez anos mais tarde, quando me levou para França… 

Tinha vindo da tropa, usava o cabelo à escovinha, ainda falava um português avec accent… A Rosemari

e "não achei muita piada, para mais numa terra de magalas que passavam a vida a mandar piropos parvos às raparigas, quando vinham à cidade"…

A Rosemarie reparou, isso sim, na extensa cicatriz, com quatro ou cinco centímetros, que o Antoine ostentava no rosto, no maxilar direito, no enfiamento da orelha. Parecia exibi-la com orgulho, apesar do disfarce das patilhas.  Era a sua “cruz de guerra”, ganha com sangue na Indochina, em  março de 1954, logo no início da batalha de Dien Bien Phu.

O Antoine era de nacionalidade francesa, mas de origem portuguesa, por parte do pai. Este era flaviense e tinha integrado o corpo expedicionário português, o CEP, na I Grande Guerra, como 1º cabo ou sargento, a Rosemarie não sabia precisar o posto.

E por lá ficou, em França, o pai do Antoine, tendo-se tornado francês por casamento. Vivia na região da Île de France. Foi um dos prisioneiros portugueses da batalha de La Lyz, em abril de 1918. No cativeiro contraiu a tuberculose e escapou, com sorte,  à pneumónica (ou "gripe espanhola") de 1918/19. 

Nunca mais regressou à Pátria, e fez um primeiro casamento, logo que foi libertado. Ficou com uma pequena pensão de guerra, mas cedo enviuvou, não tendo filhos. Até ao final dos anos 20 só se sabe que trabalhou como capataz ou encarregado numa grande quinta que fornecia produtos agrícolas e animais para os mercados abastecedores de Paris.

Foi lá que conheceu a segunda mulher, também francesa, mas de origem judia sefardita, com antepassados em Marrocos. Terão sido, muito provavelmente a avaliar pelo apelido, Ben Oliel, judeus expulsos de Portugal no tempo de Dom Manuel I.

A Rosemarie não sabia grandes pormenores sobre a “árvore genealógica” do Antoine, do lado da mãe, embora usasse o seu nom, o apelido de família. O seu companheiro era uma pessoa muito reservada, nunca ou raramente falando do seu passado, e em especial do tempo da tropa e da guerra.

A Rosemarie não chegou a conhecer a família do Antoine, nem sequer a sua segunda mulher, que morrera largos anos  antes de ela chegar a França. O pai, esse,  morrera ainda muito  mais cedo,
na véspera da II Guerra Mundial, não tendo por isso sofrido a vergonha, la honte, da derrota militar da França, cujo território ele estava convencido que era “intransponível” devido à mítica “linha Maginot”… Nem conheceu, felizmente para ele, a amargura da ocupação da sua querida França pelo exército nazi. Tinha quarenta e poucos anos, e deixava  4 filhos órfãos, dos quais três rapazes e uma rapariga.

Em junho de 1940, a família, em pânico, como milhões de outros franceses, fugiu para o sul, refugiando-se em Bordéus, onde sobreviveu, algumas semanas, com as suas escassas economias e parcos haveres.

Com a ajuda do cônsul português de Bordéus (de que a Rosemarie, imperdoavelmente, não sabia o nome, Aristides Sousa Mendes), a família Ben Oliel conseguiu obter um visto que lhe permitiu chegar a Vilar Formoso, sã e salva. 

O Antoine não tinha ainda 10 anos nessa época mas, ao que parece, terá ficado com recordações bem vivas dessa dramática viagem de comboio, de noite, e do alívio da chegada a Portugal, país de que ele irá gostar muito, até ao fim da vida.

− Il aimait trop le Portugal! − jurava a Rosemarie.

A família é, entretanto, separada, a mãe fica com os filhos mais novos. O Antoine e outro irmão mais velho vão para um seminário ou orfanato no Porto.

−Tempos difíceis! – comentaria o entrevistador francês.

Viveram da caridade. Tanto quanto a Rosemarie contou sobre este periodo , e pelo que o Antoine lhe contava, e que era muito pouco, a mãe, viúva, sem qualquer contacto com a família do marido, que era de Chaves, esteve num lar de freiras, no Porto ou arredores, com o apoio discreto de uma organização portuguesa judaica.

Com 15 anos, o Antoine, já rapagão, voltou a França, depois da Líberation, para ver em que pé estava o assunto da casa da família… A quinta ( e a casa onde viviam, com mais trabalhadores, franceses e estrangeiros) fora requisitada pelas autoridades militares alemãs, e havia notícias de que tinha sido  alvo de ações de sabotagem por parte da Resistência francesa ou bombardeada pelos Aliados.

Entretanto, o Antoine encantara-se por Chaves onde descobriu, com a ajuda dos padres, alguns parentes da família do pai, incluindo um tio, que era guarda fiscal, e alguns primos, que o ajudaram a ele bem como à mãe e aos irmãos. Ia lá passar férias enquanto esteve no seminário. 

Mas em 1944 já tinha sido expulso do seminário  por razões que a Rosemarie nunca soube. 
 Desconfiava, isso sim,  que teria sido pelo seu comportamento truculento e até violento, enfim, pela sua maneira de ser e de falar, que “não ficava bem num futuro representante de Deus na terra”.

Fixou-se em Chaves, "deu em malandro" (sic). Já perto do final da guerra, meteu-se numa "troupe" que fazia contrabando fronteiriço, com um dos primos, filho do tio da Guarda Fiscal. Pequeno contrabando, como café e cigarros...

Mas,  logo em finais de 1946, o Antoine  voltou a Chaves e às atividades lucrativas (mas arriscadas) do contrabando. Aprendeu a conhecer aquelas serras e os caminhos dos contrabandistas. Passados uns meses, teve que fugir para França quando um dos elementos do bando foi atingido, a tiro,  na Galiza, pela Guardia Civil. O tio aconselhou-o a ficar por lá uns tempos.

A família Ben Oliel conseguiu reaver a casa que tinha, a sudeste de Paris. Os miúdos voltaram. E por lá cresceram e casaram. A Rosamarie só conhecia os mais novos. O mais velho já tinha, entretanto, emigrado para Buenos Aires e por lá ficou, sem nunca ter regressado a França ou a Portugal. Nem sequer ter dado notícias.

Em França, a vida da família melhorou um pouco com o apoio da Sécurité Sociale, enquanto o país ia recuperando do pesadelo da guerra, da ocupação e da resistência.

Os “30 gloriosos”, o “milagre económico francês”, fizeram também esquecer os conflitos militares nos territoires d’ outre-mer em que a IV República estave mergulhada, a começar pela sangrenta guerra da Indochina e depois a da Argélia.

Sem paradeiro certo, vivendo de biscatagem, o Antoine não resistiu a uma campanha de recrutamento da Legião Estrangeira, fazendo por volta de 1950 um contrato de seis anos. Era menos uma boca a alimentar lá em casa. Por outro lado, tinha frequentes conflitos com a mãe e os irmãos mais novos. E estava, de
 resto, em idade militar.

A Rosemarie sabia pouco deste período obscuro da vida do Antoine e não conseguia sequer localizar no mapa a Indochine … e muito menos pronunciar Dien Bien Phu. Desculpava-se que a geografia também não era o seu forte. E quando chegou a França nos princípios de 1969, "ainda no tempo do De Gaulle", já não se falava dessas guerras.

Por outro lado, dizia-te que ele tinha sido paraquedista, o que não correspondia à verdade.  Mas não havia informações detalhadas e precisas, sobre o seu passado militar.

Por alguns amigos e conhecidos, inquiridos pelo entrevistador francès,  soube-se que o Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 18/19 anos, por volta de 1950. Pertencia, não aos paraquedistas, mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para  Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. De resto, o Antoine "não gostava de voar, tinha vertigens, pelo que nunca teria passado sequer nos testes para paraquedista" (confidenciou um antigo camarada de armas).

Em finais de 1953 estava na Indochina,  para logo, passados três meses,  em 13 ou 14 de março de 1954  ser ferido gravemente por um estilhaço de obus que lhe desfigurou o rosto.  Teve ainda a sorte de poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressariam do doloroso cativeiro.

−Escapou da morte quase certa, em Dien Bien Phu ou no cativeiro –  comentou um dos entrevistados franceses.

Um ano e tal  depois da convalescença ainda passou pela Algérie. Conseguiu prorrogar o seu contrato por mais uns tempos e ficou por Argel. Aí, sim, terá estado numa base aérea, numa unidade de apoio logístico aos paraquedistas, antes de completar os seis anos de contrato com a Legião Estrangeira.

A doença, e a subsequente morte da mãe, obrigou-o a apressar o regresso a casa, em 1956. E foi, talvez um ano ou dois depois, em 1958, que ele  conheceu a Rosemarie em Chaves.

Os amigos comuns de Óbidos também eram repatriés ou retornados (pieds-noirs, era a expressão injuriosa que se usava em França para designar a população europeia, ou de origem europeia,  que fora obrigada a deixar a Argélia, depois da independência). Professores num colé
gio privado, eram de origem judia, como muitas das profissões liberais a viver e a trabalhar naquela antiga colónia francesa do Magrebe, a “joia da coroa” do império colonial francês: médicos, farmacêuticos, advogados, notários,  professores, agricultires, empresários, etc. A maior parte, de resto, eram já nascidos na Argélia,  há várias gerações. 

Foram entretanto  viver para a região da Ilha de França,  logo em 1962, tendo vindo na leva dos cerca de 800 mil repatriés… Por volta de 1966 começaram a frequentar o bistrot do Antoine, de quem eram vizinhos, mas ele nunca ou raramente abria o jogo sobre os seus tempos de legionário. Gostava, isso sim, de falar da Argélia e de Portugal… mas nunca da Indochina. Eram as duas coisas que os aproximavam. De resto, não falavam de política. Nenhum deles gostava de De Gaulle, mas por razões diferentes.

bistrot do Antoine, na petite ville de A…, no Val-de-Marne, era muito popular nesse tempo, sendo o centro da vida social dos imigrantes portugueses que chegavam a França mas também de alguns magrebinos nascidos em França ou com muitos anos de França, incluindo ex-combatentes da guerra da Argélia…

Antigos camaradas de armas do Antoine, que viviam na banlieue  de Paris, também apareciam de vez em quando para saluer les copains, beber um copo em memória dos “bons velhos tempos” e fazer uma jogatana de cartas, refugiando-se numa das “salas reservadas” do estabelecimento.

A Rosemarie tinha uma presença discreta mas assídua no bistrot do Antoine, substituindo-o, nas funções de gerência, sempre que ele se ausentava por mais de um dia. Em boa verdade, não gostava dos amigos do Antoine, do tempo da tropa e da guerra. Sempre os achou "más companhias" do seu patrão. E, quando ele não estava, "apalpalvam-lhe o rabo, os salauds, os sacanas".

A pouco e pouco o Antoine começou a ser conhecido como o “padrinho” dos portugueses da região e ninguém sabia ao certo desde quando e como é que ele começara a sua atividade de “passador”. Levava, no mínimo,  dez contos por cabeça, para atravessar a fronteira. Por vezes a crédito, mas sempre com juros. Começou a trazer muita gente do Norte, "do rio Minho ao Mondego"... 

Respeitavam-no, para não dizer que o temiam. Aos caloteiros não estava com meias medidas: das ameaças passava aos atos e, não raramente, “andava à porrada”. Muitos foram viver para o bidonville de Champigny, e ele procurava ajudá-los a arranjar emprego e a “tratar dos papéis”. Havia redes de recrutadores de mão de obra ilegal, para o bâtiment, os chantiers, a construção e obras públicas. Enfim, tudo isto custava dinheiro, pelo que alguns desgraçados passavam um ano a trabalhar para pagar as dívidas do “salto”… 

De estatura média mas com um “tronco de touro bravo”, era exímio no jogo de pés e cabeça. A cabeçada dele chegou a mandar alguns para o hospital. Não usava armas,  a não ser em “casos extremos”.

Foi sempre bem sucedido nas suas “viagens de passador”, sem percalços de maior. Conseguiu arranjar passaporte português, já que tinha dupla nacionalidade, obtida em finais de 50. Ao que se suspeita, mais do que se sabe, tinha alguns bons contactos, na PIDE,  na Guarda Fiscal, na GNR, na Guardia Civil e na Gendarmerie, o que facilitava as suas deslocações e a passagem da “carga” nas duas fronteiras.

Mas voltando à Rosemarie: como sabia cozinhar, e "até cozinhava bem", foi uma boa aquisição para o tasco do Antoine. À noite, o bistrot enchia-se de clientes, a maior parte portugueses com saudade do "caldo verde" e de umas boas bifanas no "casqueiro".

Com o seu trabalho, ela pagava a “renda da casa” e ia descontando um xis por mês para as despesas da passagem a salto. Trabalhou um ano para o Antoine, sobravam-lhe uns trocos para os “alfinetes”… Saía de uma escravatura para se meter noutra, receava ela.

Arranjou, por isso, um part-time na limpeza de um consultório médico e depois numa clínica. Vinha a tempo de fazer o almoço para os dois. À tarde e à noite trabalhava no bistrot, era pau para toda a obra, estava na cozinha mas também dava um jeito nas mesas e ao balcão. E ao fim de semana havia fado…

Ao fim de alguns meses, lá pelo volta do Nöel de 1970, já se “desemerdava” (sic) com o francês. "A vida rolava bem". Estreou-se tempos depois no bistrot a cantar, em caraoque, a Amália e a Maria da Fé, que também começava a estar na moda…

Ainda não havia guitarrista, só viola. Alguém desencantou um tipo fugido à tropa que em tempos tinha acompanhado, à guitarra, fadistas amadores em tascos do Bairro Alto. Trabalhava como operário numa fábrica da Citröen. Dois ou três meses depois, com muitos ensaios, a Rosemarie apresentou-se, de xaile preto e rosa vermelha ao peito, a cantar o fado no bistrot, acompanhada à guitarra e à viola…

Comme il faut!

Antoine não escondia o seu orgulho. Apresentava-a já como sua copine, chanteuse, não escondia o seu afeto por ela e elogiava o seu talento.

Une deuxième Amalia! – garantia ele aos seus amigos franceses.

Foi a altura em que os teus anfitriões da casa de Óbidos a conheceram. Foi também o melhor período da vida da Rosemarie, não só da sua vida em França, como de toda a sua vida!

Ah!, oui, j’ ai été três heureuse à cette époque-là! − garantiu-me ela.

A Rosemarie, aux yeux verts, "de olhos verdes", começou a ser notada. E o bistrot do Antoine duplicou a faturação. Mas o seu principal negócio continuava a ser o “ilegal”, o transporte de imigrantes clandestinos, de carro e de comboio… Como fachada legal e fiscal, tinha o tasca e uma loja de antiguidades, no próprio château, na prática, um depósito de velharias… Com os negócios a prosperar, também comprou um licença de táxi e arranjou um motorista, luso-francês de confiança.

Mas era a atividade de passador que lhe garantia mais proveitos. Terá ajudado centenas de portugueses e até magrebinos, a instalarem-se e legalizarem-se em França. E dizia-se até que explorava os desgraçados dos imigrantes com o aluguer de algumas "barracas" em Champigny. Coisa que a Rosemarie nunca soube (ou nunca quis saber). Nisso era notável a sua habilidade em ignorar, escamotear ou "branquear" algumas partes mais desagradáveis da sua vida em comum com o Antoine Ben Oliel.

Tudo corria bem, para o Antoine (e para a sua companheira), até à crise económica de 1973 e sobretudo até ao 25 de Abril… Meteu-se depois la merdre de la politique, lamentou-se a Rosemarie. A partir de 1974, começou a baixar a clientela do bistrot e as viagens a Portugal tornaram-se mais espaçadas…

− Et le fado devient… réactionnaire! – indignava-se ela.

− Reacionário... como assim ? – perguntaste-lhe ti, fazendo-me ingénuo,

Não soube ou não me quis responder. Repetia apenas que o fado se tornara "reacionário", e que os baladeiros haviam destronado os fadistas...

Em suma, a Rosemarie “perdeu o pio”, deixou de cantar por uns tempos, aproveitando a má maré para dedicar mais tempo à sua atividade principal, de femme de ménage. Criou uma empresa de limpezas, com o Antoine como sócio minoritário… E que foi um sucesso. Começava assim a ganhar independência em relação ao “seu homem”…

− Há males que vèm por bem! − contemporizava eu.

Cantava, mais esporadicamente, em festas de portugueses, até meados dos anos 80… "Sempre em portugês"... Naturalmente que nessa altura a estrela da canção luso-francesa era a Linda de Susa... que a Rosemarie nunca conheceu pessoalmente, mas de cuja voz e canções também gostava muito. Viu-a apenas uma vez num concerto em Paris, já vedeta internacional.

Começou a fazer amigos franceses. E integrou-se muito bem naquela pequena cidade de província, na banlieue de Paris. Durante muitos anos não veio a Portugal, nem mesmo quando o pai faleceu. E por volta de finais de 1980 consegue finalmente obter o divórcio do seu primeiro casamento. Nunca chegou a saber o destino que teve o seu primeiro marido, desaparecido para sempre, talvez assassinado numa lixeira de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

No início dos anos 90, o Antoine Ben Oliel, já sexagenário, terá tido uma depressão, começou a beber mais ido que o habitual, e os negócios ressentiram-se. Ela ajudou-o a reequilibrar-se com "apoio psiquátrico". Mas em 1995 ele tem uma nova recaída e faz um tentativa de suicídio. Puxou do revólver e apontou à cabeça. In extremis, ela salvou-o, mesmo com risco da sua própria vida... Na luta corpo a corpo, a arma ainda disparou dois ou três tiros para o ar ("ainda lá estão marcados no teto")... Talvez por gratidão o Antoine aceitaria, mais tarde, casar-se com ela, já no ocaso da vida.

 − Era violento, o Antoine ? – perguntaste tu, com alguma  ingenuidade,  Rosemarie, em 2018, o último ano em que ambos se  viram, estando  os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de deles, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surménage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

− Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano,  no ano em que eu nasci.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E tu recordaste-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

− Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

− Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina, o meu fado!... Afinal, tive dois homens que me  amavam 
e me  batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca chuleira, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era truculento e ciumento. Sugeriste à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

− Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referiste-lhe o facto de ele ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

A Rosemarie nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

− Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o Francês. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito com os entrevistadores sobre  a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo (e uma escrava) para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

− Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube saber nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de frustraca "por não ter dado filhos ao Antoine". "Primeiro, passou a idade... E depois talvez fosse estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, tudo indicavava que ela teria tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu a entender, nas entregvistas,  que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não  escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974/75... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar (e pressentindo talvez o fim!), o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1999, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 68, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Dois anos depois, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! – arrematou ela.

Os últimos tempos  de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-te a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Tu, pelo teu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  

Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estavas esperançado que ela te arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E em meados de 2020,  morreu, vítima de Covid-19.
 
Com a morte da Rosemarie, inesperada,  apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a viste, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, ou pelo menos reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. 

Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida, mas,  em vão, amar e ser amada. "Foi o seu fado"... Despediu-se de ti, a cantarolar a Edith Piaff:

"Non! Rien de rien, 
Non! Je ne regrette rien. 
Ni le bien, qu'on m'a fait, 
Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...(#)
 
© Luís Graça (2020). Revisão: 21/3/2024

(#) Tradução (à letra):

Não! Nada de nada,
Não! Não lamento nada.
Nem o bem,  que me fizeram,
Nem o mal, 
P'ra mim, é tudo igual!
____________

Nota do editor:


(*) Último poste da série > 21 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I

Sinopse da Parte I :

(...) "Conheceste a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. 

"Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

"Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe 'oublier' (esquecer) e até talvez 'cacher' (esconder) ou mesmo 'effacer' (apagar)  a sua origem portuguesa e a sua condição humilde de imigrante em França, filha de pequenos rendeiros pobres do Norte de Portugl.

"Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca chuleira de uma tuna rural do Marão, alcoólico, ex-combatente, foi vítima de violência doméstica.

"Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um 'cadavre', o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, em Angola  ou no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, no inicio de  1969, quando partiu para França 'a salto«. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos." (...)