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sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25382: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVI: o golpe militar de Bissau


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. 

Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza .

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Antiga página de rosto do  Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social  (#) publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 


1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida  [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da SilvaCoronel Matos Gomes,   José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]

Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt  (ou Bettencourt) Rodrigues, e  concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau. 

Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra.  E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.

Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:

  • Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
  • Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
  • José Manuel Barroso [n. 1943]  : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
  •  Florindo Morais  [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida

2.  O Golpe Militar de Bissau (##)

Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)

Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)

 [...] General Mateus da Silva: 

Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades. 

Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido,  na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.

Luís Salgado Matos: 


Qual era o papel do general Bettencourt Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar? Tinha alguém em quem tivesse confiança?  


Coronel Matos Gomes: 


Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa. 


Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior. 


Para os comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género: «Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não saber também coisas [concretas] essenciais. 


José Manuel Barroso: 


 [...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava. 


Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução. 


Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.» 


Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.


General Mateus da Silva: 


[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa. 


Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa. 


Às 5 ou 6 da manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido. 


Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no dia 25 de Abril.


Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos). 


E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!» 


Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa. 


Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra. 


Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que,  apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído. 


O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe: 


«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?» 


O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA. 


O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera de receber instruções, e passou toda a noite assim. 


No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer. 


E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar. 


Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer que aderia ao MFA. 

  [...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe. 


O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe. 


Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta. 


Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos. 


Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete… 


Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro. 


O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim: 


«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.» 


Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada. 


O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:


 «Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.» 


E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues: 


«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».


 Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.  


O general Spínola já deu uma entrevista a dizer que o Bettencourt Rodrigues foi preso na Guiné, quando a verdade é que quem mandou prender o Bettencourt Rodrigues foi ele, Spínola. Porque quando Bettencourt chegou a Cabo Verde, teve de esperar por ligação para Lisboa, e teve de ficar um dia, ou coisa assim, e os elementos de Cabo Verde agitaram-se, falaram para Lisboa. E então veio um telegrama de Lisboa, da JSN [JUnta de Salvação Nacional ] , a dizer que o general Bettencourt Rodrigues devia regressar a Lisboa, sob prisão.

Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…

Luís Salgado Matos: 


Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que ele responde?


General Mateus da Silva: 


Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer: 


«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.» 


Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]


Coronel Matos Gomes: 


Só houve três oficiais que se solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e, posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes. 


General Mateus da Silva: 


Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência. 


Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:


 «Se está solidário, saia!» 


Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade. 


Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.» 


Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à JSN. 


Manuel de Lucena: 

Da JSN, quem deu o aval à sua posse? 


General Mateus da Silva: 


Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro.  [...] (#)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)

 _____________

(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/UL

(##) Vd. também aqui o depoimento de J. Sales Golias [n. 1941] , ten cor > A descolonização da Guiné: Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra / Fórum dos Estudantes da CPLP, Coimbra, 30 de Abril de 2005 

(###) O Jorge Sales Golias  fala em onze:

Lista dos Oficiais revoltosos (##);

TCor Mateus da Silva, Engº Tm | TCor Maia e Costa, Engº | Maj Folques, Cmd | Maj Mensurado, Pára | Cap Simões da Silva, Art | Cap Sales Golias, Eng Tm | Cap Matos Gomes, Cmd | Cap Batista da Silva, Cmd | Cap Saiegh Cmd, (Africano) | Cap Ten Pessoa Brandão, Armada | Cap mil José Manuel Barroso
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

sábado, 6 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25346: Agenda cultural (852): Convite para o lançamento do livro "Geração D", da autoria de Carlos Matos Gomes, a realiar no dia 11 de Abril de 2024, pelas 18h30, na Sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglés de Lisboa, Av. António Augusto Aguiar, 31


C O N V I T E

A Porto Editora, o Âmbito Cultural do El Corte Inglés e o autor convidam-no/a para o lançamento do livro Geração D, de Carlos de Matos Gomes, que se realiza a 11 de abril (quinta-feira), pelas 18:30, na Sala de Âmbito Cultural (piso 6) do El Corte Inglés de Lisboa .*

O autor estará à conversa com José Fanha.

Esperamos poder contar com a sua presença.

*Av. António Augusto Aguiar, n.º31 | 1069-413 Lisboa


MAIS INFORMAÇÕES
Vera Valadas Ferreira | 21 836 40 50 | 910 464 457 | vvferreira@portoeditora.pt

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Notas do editor

Vd. recensão do livro "Geração D" da autoria de Carlos Matos Gomes, por Mário Beja Santos, nos posts de:

18 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)

25 de março dfe 2024 > Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)
e
1 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25301: Agenda cultural (851): "Noite de Solidão no Capim", peça de teatro da autoria de Castro Guedes, levada à cena pela Companhia de Teatro Seiva Trupe. Pode ser vista na Sala Estúdio Perpétuo, no Porto, até ao próximo dia 27 de Março (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É o término da viagem memorial de um Capitão de Abril que escolheu um longo itinerário e não hesitou em dizer-nos como levou uma vida pautada por decisões de risco e pela independência de pensamento. Tenho sérias dúvidas que algo parecido possa surgir tão cedo à volta deste meio século que abarca o fim do império e as sinuosidades que têm atravessado o nosso sistema democrático.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (3)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. 

É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Cumpriu três missões em Angola, Moçambique e Guiné, louvado e condecorado, preparou uma companhia de Comandos de que foi seu comandante, o cenário de Moçambique foi determinante para ele questionar a fundo o mais que havia para além da honra e do dever, para além da vasta panóplia de requisitos que impõem a vida militar, vai numa operação em que o guia é um negro que promete levá-los a um objetivo, vai amarrado a um dos seus homens, uma inquietação sem limites começa a tomar-lhe a razão, que causa o ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o seu comando? Que causas justificava a presença de cada um deles naquele palco? 

Tomou nota de que operações como a Nó Górdio nada resolviam, revolvia-se um território, a guerrilha e a população civil acoitavam-se até a operação passar, tudo voltava ao princípio, se bem que a comunicação social afeta ao regime louvaminhasse o feito, era a política da representação.

Geração D é um singularíssimo livro de memórias, já se disse o que este militar viveu até ao 25 de Abril e como ele, e muitos dos seus camaradas tiveram a possibilidade de ver na Guiné que se caminhava para uma hecatombe, tudo iria redundar num bode expiatório, seriam os militares os maus da fita, resolvido o incómodo da Guiné, julgavam os avatares no Estado Novo, todos os meios iam ser postos à disposição das joias imperiais, Angola e Moçambique, contava-se com o auxílio da África do Sul e da Rodésia. 

Matos Gomes adere ao 25 de Abril, alista-se na esquerda revolucionária, põe ênfase na relação que estabelecera com Jaime Neves e como seguiram vias separadas. Detalha o verão quente, as manobras, as alianças, os documentos, a ação de Otelo, o papel do COPCON, a mestria de Costa Gomes de gerir as fações, a impor o acatamento, recorda também como os paraquedistas voltaram a ser traídos.

Findo o 25 de novembro, Matos Gomes está suspenso, aguarda ser chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, é convocado e conta-nos o que aconteceu:

“O general promotor leu a acusação com fraco entusiasmo. Formalmente era acusado de ter assinado um documento, o mais comum dos crimes na altura. Entreguei um passaporte que revelava, através dos carimbos das alfândegas, que naquela data me encontrava na Alemanha. Recebera um telefonema de um dos signatários a perguntar se subscrevia mais este documento. Claro que sim. Estávamos do mesmo lado da barricada. 

Também era acusado pelo novo Chefe do Estado-Maior de ter assinado um outro, num encontro no Regimento de Polícia Militar, resultante de uma reunião determinada por Otelo Saraiva de Carvalho, na qualidade de comandante do COPCON. Entreguei aos generais uma ordem de serviço do Hospital Militar onde constava o meu nome e o do Chefe do Estado-Maior, então major e ainda meu contemporâneo na Academia Militar. 

Face a estes factos, concluía pela má-fé do Chefe do Estado-Maior e pedia para constar na ata do julgamento a minha queixa formal contra ele. De seguida, o general presidente deu-me a palavra. Tratava-se do julgamento político de um conflito entre defensores de opções políticas para a sociedade, e a disciplina não é, ou não devia ser, utilizada para esse fim. Estava à mercê da força e não do direito, menos ainda da disciplina. 

O general presidente deu a sessão por encerrada, mas antes do Conselho pedir para eu me retirar, a fim de deliberar, o General Leão Correia, a olhar para o meu uniforme cinzento sem uma condecoração ou emblema, limpo, perguntou-me por que não trazia as fitas com as duas cruzes de guerra com que fora agraciado. Apresentei as razões que me levaram a não usar condecorações: a primeira das cruzes de guerra havia-me sido imposta em Bissau, por um General Comandante-Chefe, Spínola, perante forças em parada, comandadas por um coronel, também ele condecorado. A segunda fora-me entregue há uns meses na secretaria da Direção de Arma de Cavalaria pelo Sargento Leitão, dentro de um envelope, como se fossem umas peúgas. ‘Ora, como não sei se foi a primeira a forma correta de ter sido condecorado, ou a segunda, para não ofender o Exército, decidi não usar condecorações até que seja esclarecido.’ 

O veredito do Conselho reconheceu-me idoneidade para continuar a ser oficial do Exército.”

Matos Gomes é mandado apresentar-se no Serviço Prisional Militar, com sede no edifício da PIDE/DGS, torna-se carcereiro, estão ali algumas figuras graúdas da PIDE. Procura aprofundar o que aconteceu após o 25 de novembro de 1975. Fez 30 anos, tinha uma casa, uma mulher e uma filha com 1 ano, houve eleições legislativas e autárquicas, a cena política internacional transfigurava-se, por cá vivia-se aconchegado com a normalidade democrática, as coisas não corriam favoravelmente às ex-colónias portuguesas. 

Exara nas suas memórias o poder sugestivo que lhe deixou ter-se envolvido no poder popular. Acompanhou Otelo em parte da sua caminhada, era um ser estranho entre aquelas organizações, não era marxista-leninista, revela o seu quadro de pensamento: 

“Rejeito a luta de classes como o princípio dominante das transformações políticas, entendo-a apenas como mais um, e não o determinante. A propósito desse elemento determinante, nunca soube nem procurei descobrir qual é a gota de água que faz transbordar o copo, mas assisti a intermináveis discussões teológicas com muito fumo e fé sobre o assunto. 

Também não perfilhava o princípio da necessidade histórica da alteração das relações de poder ser liderada pela vanguarda do proletariado, pelo partido. Nem era adepto de uma ditadura do proletariado, que ofendia a minha liberdade, a ideia de igualdade dos seres humanos, independentemente da posição que ocupam no processo de trabalho, e contrariava a realização das ditaduras do proletariado estabelecidas.” 

Afastar-se-á das Forças Populares 25 de Abril quando surgiu a radicalização da violência armada.

Lançou-se na escrita, louva o seu quadro de amigos, exulta com a camaradagem que pode manter com um punhado de militares. E a viagem prossegue. 

Quem escreve estas memórias singularíssimas, quem continua a intervir ativamente como observador atento e com opiniões aceradas, é o mesmo escritor que nos legou Nó Cego, Soldadó ou A Última Viúva de África

Há que saudar quem coligiu este punhado de anotações tão íntimas que vão da ditadura à democracia e dizer sem hesitações que não há nada parecido na literatura portuguesa, pois é o testemunho de um bravo militar, um capitão do MFA, alguém que foi revolucionário e nos doou a mais bela joia da literatura da guerra colonial, como se afirmasse, ponto por ponto, que a sua coerência e postura política não estão à venda.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25310: Os 50 anos do 25 de Abril (5): Exposição de fotografias de Alfredo Cunha, Galeria Municipal Artur Bual, Jan-jun 2024: "25 de Abril de 1974, Quinta-feira"


Cartaz da exposição. Gravura de Alexandre Farto / Vhils (capa do livro do Alfredo Cunha, com o mesmo título: "25 de Abril de 1974, Quinta-feira" ( Lisboa, Tinta da China, 2023)


Exterior da Galeria Municipal Artur Bual, Amadora


Interior da exposição (i) 


Interior da exposição (ii) 


Interior da exposição (iv) 


Cartaz de rua (detalhe)


Fotograma (1)


Fotogramaa (ii)





Excerto do  texto do jornalista 
 Luís Pedro Nunes


Fotograma (iii): Excerto de texto do Carlos Matos Gomes


Interior da exposição (iv)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Está a decorrer, na Galeria Municipal Artur Bual, na Amadora, a exposição "25 de Abril de 1974, Quinta feira.
 Fotografias de Alfredo Cunha". Multimédia e música de Rodrigo Leão. 

A exposição termina em meados de Junho de 2024.
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Nota do editor: 

Último poste da série > 25 de março dfe 2024 > Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É um livro de memórias onde logo nas primeiras páginas se dá a entender que estalou uma rebelião espiritual entre a aprendizagem e o sentido da ordem e o tremendo enganador equívoco de uma guerra sem sentido, o militar que vai participar numa grande operação apregoada como aniquiladora da resistência da guerrilha descobre o completo sem sentido da mesma, a operação não passa de um ato de vaidade para fazer esvoaçar as asas do pavão; de Angola para Moçambique, formando uma companhia de comandos e depois de um compasso de espera de novo num batalhão de comandos africanos, desta feita na Guiné, a consciência está plenamente desperta, a guerra caminha para o abismo, e daí um militar conjugar esforços com outros e vamos ouvir a história da formação do movimento dos capitães da Guiné. As memórias continuam, o capitão aderiu ao PREC, dele tirará os seus ensinamentos, como conversaremos a seguir.

Um abraço do
Mário



Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (2)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D - Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

É na região de Tete, em maio de 1971, que aquele capitão, comandante de uma companhia das tropas especiais, fez a pergunta do que efetivamente estava a fazer naquele fim do mundo. O poder destas memórias de Carlos de Matos Gomes assenta na sinceridade com que fala das razões por que escolheu a instituição militar, como foi descobrindo que se estava a hipotecar uma juventude em nome de um puro devaneio imperial, sem qualquer sustentação temporal, confrontado com decisões operacionais de opereta, caso da Operação Nó Górdio iniciada em 1 de junho de 1970, e que lhe dará alimento fecundo para essa obra-prima que é o "Nó Cego".

 Não apóstrofa, não incensa os condimentos do horror, exprime-se naturalidade quando fala dessa fada-madrinha que dá muito jeito na guerra, a sorte. Há para ali a explosão de uma morteirada, provocou muitos feridos, mas ele tece louvores à sorte:

“A minha sorte é que rebentou no pé de uma árvore de bom diâmetro, precisamente do lado oposto à minha posição. Mesmo assim, apesar da sorte de a árvore ter ocultado parte da explosão e estilhaços, fui atingido ainda por alguns deles, felizmente pequenos, um dos quais me partiu o dedo mindinho da mão esquerda, outros quatro alojaram-se nas costelas e osso do antebraço direito. Ainda hoje aqueles estilhaços encontram-se alojados nas minhas costelas e antebraço direito. Outros estilhaços muito pequenos espalharam-se pelas costas sem graves consequências.” Bem dita árvore!

Aquelas grandes operações não serviam para nada, não solucionavam a guerra.

“A minha geração cumpriu até concluir que não lhe cabia cumprir a ordem de sacrificar a sua nação.” 

Partira para Angola em 1969, regressava a Lisboa no verão de 1971. É também para isso que servem os livros de memórias, para contarmos de onde vimos, a nossa ancestralidade, por onde andamos na juventude, como chegou à Academia Militar. E como se ofereceu para a Guiné, não escondia a curiosidade de encontrar nas atividades do General Spínola uma resposta que podia ajudar a esclarecer as suas questões e com o regime. 

Ofereceu-se para assessorar uma companhia de comandos africanos, decidira que esta seria a sua última comissão em África, enquanto militar profissional não acreditava na vitória militar e enquanto cidadão não aceitava que se continuasse numa guerra sem que os portugueses se pronunciassem sobre ela.

Spínola e um direto colaborador, o Major Almeida Bruno, congeminaram a constituição de um Batalhão de Comandos Africanos. Spínola deu uma explicação a Matos Gomes:

“As tropas europeias assegurariam o apoio de fogo e de combate, enquanto não existissem quadros locais para as guarnecer. A Força Aérea e a Marinha continuariam a cumprir as suas missões, mas integrando o maior número de quadros locais que lhe fosse possível. O Batalhão de Comandos Africanos seria a principal unidade de combate ofensivo. Spínola pretendia criar um exército guineense, tendo como objetivo final umas Forças Armadas da Guiné, em que os militares portugueses fossem quadros técnicos.”

O novo centro de instrução de comandos é localizado em Mansabá. Matos Gomes ambienta-se, comanda uma das operações típicas da manobra política e militar de Spínola, no Quínara, a missão consistia em atravessar a península que integra São João, Tite e Fulacunda. Houve fogo quanto baste.

“Aprendi na Guiné que o mais seguro é passar a noite na bolanha, porque a lama absorve as explosões das granadas, basta que não nos caiam em cima. O problema são as marés. A técnica de estacionar em círculo à noite também não era usada pelos comandos africanos – todos passávamos a noite em linha, primeiro de cócoras, depois de pé, à medida que a água subia.”

Assim decorreu a sua primeira experiência como assessor das tropas africanas em combate. Vai obtendo informações quanto às tentativas de negociação de Spínola com Léopold Senghor, Marcello Caetano rejeita tais conversações.

O autor reflete sobre os comportamentos um tanto paradoxais do carismático Spínola que na Guiné parecia um político capaz de ler o “tempo da História” e que depois do 25 de Abril cometeu erros absurdos, chegando a ligar-se aos radicais do Estado Novo, aos vigaristas reunidos no MDLP/ELP, e procura dar uma explicação:

L“Na Guiné ele agiu por desejo de glória, de ganho político, e para alcançar esses fins identificou-se, através de gestos de simpatia com a população, caso dos Congressos do Povo. Embora pelo que lhe diziam os seus assessores ele estivesse convencido do contrário, os portugueses não conheciam Spínola e depararam-se com uma figura anacrónica, que surgiu desfocada nos ecrãs a preto e brancos das televisões na noite de 25 de Abril de 1974.”

Naquele desesperante mês de maio de 1973, numa tentativa de romper o cerco em Guidage, terá lugar a Operação Ametista Real, que cumpriu o seu objetivo. E o autor dá-nos conta de como se vai dando a fermentação do movimento dos capitães na Guiné, quem é quem, onde se reúnem, e aproveita para nos dar um contexto de tudo quanto ia ocorrendo em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral, a reação do PAIGC, tomara a iniciativa de forma espetacular, pois alcançara valores que eram os mais altos de sempre desde o início da guerra: 220 ações provocando às nossas tropas 63 mortos e 269 feridos.

É no aceso desta ofensiva do PAIGC que chega a notícia da realização de um Congresso dos Combatentes, impulsionada pela extrema direita, gera-se uma movimentação contra o congresso, não só na Guiné, em Lisboa também há descontentamento, é um movimento de contestação encabeçado por Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço, digamos que é uma ironia, mas aquele congresso realizou-se enquanto se desenrolava uma tragédia em Gadamael, que foi mantida mas onde os militares portugueses sofreram 24 mortos e 147 feridos. E Matos Gomes escreve:

“Durante o mês de maio de 1973, a guerra na Guiné entrou num ponto de não retorno. Ao atacar quase simultaneamente no Norte, em Guidage, e no Sul, primeiro em Guileje e depois em Gadamael, o PAIGC revelou o esgotamento do potencial de combate das forças portuguesas na Guiné e da capacidade de reação a ataques combinados de controlo do território, resistindo e mantendo-se em duas frentes. O PAIGC, do seu lado, ficou a saber que dispunha de capacidade para desencadear dois ataques em força e vencer um. Poderia repetir a manobra e iria fazê-lo no início de 1974 com o cerco a Canquelifá, onde o Batalhão de Comandos Africanos conseguiu resistir duas vezes; porém, se fosse aberta outra frente, já não haveria reserva quando os paraquedistas fossem empenhados.”

Costa Gomes chega à Guiné em 8 de junho, decide-se remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo, aprova-se um plano de retraimento do dispositivo militar que devia ficar com todas as unidades aquém da linha geral rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió, para evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. 

Costa Gomes considerou a situação da Guiné como controlada e o território defensável; no entanto, ela é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal, militar e politicamente indefensável.” 

Em agosto, Spínola regressa definitivamente a Lisboa.

Matos Gomes dá a sua versão do nascimento do MFA, chega, entretanto, o sucessor de Spínola, o general Bethencout Rodrigues. Tece um apontamento dos acontecimentos de Canquelifá e assim chegamos à tomada do poder da Guiné de 26 de abril. 

PA 16 de junho de 1974, Matos Gomes está de regresso, temos agora o quadro preparatório que o vai transformar num ativista revolucionário, iremos ouvir falar no COPCON, no Batalhão de Comandos nº11, em Jaime Neves, no 28 de setembro, nas campanhas de dinamização cultural, na efervescência política do PREC, nos acontecimentos do 11 de março e a respetiva assembleia do MFA, nos gabinetes de dinamização das unidades, num bizarro oficial muito ligado ao MRPP, o major Aventino Teixeira, estamos em pleno verão quente, Matos Gomes anda esfusiante, ele e Jaime Neves demarcam posições, nisto surge o Documento dos Nove, com as suas propostas de moderação.

 Caminha-se para o precipício, Matos Gomes, com invulgar crueza e frieza, dá pormenores de como se chega ao 25 de novembro de 1975 e o depois, a caminhada que ele impôs a si próprio.

(continua)

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Nota do editor

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segunda-feira, 18 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25285: Os 50 anos do 25 de Abril (3): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É uma agradável surpresa, Carlos de Matos Gomes é ele próprio, com infância, vida familiar, a decisão tomada de ser oficial do quadro permanente, a sua passagem por Angola, como combateu em Moçambique, faz um compasso de espera em Lisboa e oferece-se para a Guiné, aí contribuirá para o desempenho do MFA. E irá contar como se processou a sua participação no processo revolucionário. O leitor será subjugado do princípio ao fim, eviscera-se a instituição militar com os seus valores, a sua burocracia, contam-se histórias hilariantes, perdas humanas, e aquele jovem capitão pergunta-se seriamente o que estava a fazer ali. Perguntado sobre o que o movia, responderá: "Não tinha um pensamento crítico organizado, e isso não dizia nada. A tropa é a tropa, é a malta. É o que a gente tem de fazer, vamos a eles e tal, aquela conversa. A seguir à primeira comissão, quando não estava na guerra, estava na Escola Prática de Cavalaria a dar instrução. O que dizia aos jovens que andavam a tirar o curso de oficiais milicianos: 'Vamo-vos preparar para vocês não morrerem. Vão para lá, são obrigados a ir, é preciso é que não morram e voltem." Um livro primoroso, um abençoado complemento para tornar mais cristalino o romance Nó Cego, a indiscutível obra-prima absoluta da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (1)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Logo no arranque da obra, aquele jovem oficial é levado a pôr uma interrogação quem tem a espessura de um cataclismo moral, está no Tete:
“Num dia de maio de 1971, perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40ºC, nas imediações dos morros de Cabora Bassa. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Prepara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio?”

E este jovem oficial que abriu o veio à consciência, apresenta-se:
“Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os Comandos, com o nome totémico de ‘Escorpiões’. Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa-mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos.”

Está para ali acompanhado de duas equipas de pisteiros rodesianos, é costume fazerem operações conjuntas. Acompanha-o um desses seres humanos sujeito a duas causas:
“Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha envergado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sob os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro.
Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, no lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando?”


A PIDE insistia na existência de uma base naquela região, a missão era aniquilá-la. Depois de muito caminhar encontraram-se na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale, não havia base nenhuma, escreve o autor, manda o soldado soltar o preso, houve quem perguntasse ao capitão se o guia devia ser abatido, o capitão disse que não. E disserta sobre o Exercício Alcora, um protocolo estabelecido entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal, os brancos da África Austral sonhavam com a criação de um bloco branco. Depois do 25 de Abril, o autor teve a oportunidade de ler os relatórios secretos dos aliados rodesianos, pouco generosos para nós: que tínhamos pouca vontade de combater, que não perseguíamos rapidamente as forças da guerrilha.

A graduação de memórias oscila entre o teatro de operações moçambicano e o curso que ele fez na Academia Militar, assim caminhamos para uma história brejeira, a da tropa de Lione, destacamento que distava poucos quilómetros em linha reta da fronteira com Maláui, vale a pena contar a história:
“A interpretação tática do comandante da companhia do Lione de não sair da quadrícula do seu aquartelamento, definida por uma ferrugenta rede de arame farpado pendurada em troncos apodrecidos, foi aceite como um facto pelo comando militar de Vila Cabral. Como tratar uma birra? O capitão miliciano comportava-se com a maior civilidade, revelava um espírito alegre, indiferença pela situação política, mandava vir revistas e jornais de Inglaterra e resumia o seu comportamento declarando que estava bem, na medida em que não podia estar pior. Se o punissem iria para outro local que seria, com elevada probabilidade, melhor do que o Lione.”

Carlos de Matos Gomes sai de Lione e vai em direção ao Malawi, cerca uma aldeia, quem lá vive não mostra temor, alguém se aproxima e se apresenta como polícia rural do Malawi. O capitão toma a decisão de pôr toda aquela gente numa coluna até Vila Cabral. Os comandos ficam petrificados quando dão conta do tremendo engano, aquela gente do Malawi após uma refeição oferecida foi reconduzida à sua terra-mãe.

Procede com ironia quando nos fala no Dia da Raça, muda de agulha quando a narrativa se prende com o primeiro morto em combate:
“Embarcámos numa lancha de desembarque pequena da base de Metangula, que oficialmente albergava o Comando da Defesa Marítima dos portos do lago Niassa. Desembarcámos numa pequena praia com o percalço de a lancha ter ficado presa num tronco, o que nos obrigou a sair com água pelo peito e a lancha a fazer muito mais barulho com o esforço dos motores para se libertar. O assalto correu como correm os assaltos: um grupo cercou a base e outro entrou a disparar. Os guerrilheiros deviam esperar-nos e responderam. O Armando, um negro robusto, sereno e de poucas falas, era sipaio da administração e servia de intérprete entre nós e o Zé Palangué (guerreiro capturado). Foi atingido no peito e caiu à minha frente. Julgo que os guerrilheiros o quiseram visar. Pertencia à tribo dos ajaua, um dos grupos étnicos da região. O Zé Palangué podia ter fugido, mas manteve-se connosco, não sei por que razão. Integrou-se na comunidade de Meponda e no espírito português de cumprir regras segundo as conveniências, apesar de islamizado preferia as latas de conserva de chouriço em óleo de mendubi às de atum ou sardinhas. Iniciámos o difícil regresso pelos montes e vales das margens do lago, com o corpo do Armando para o entregarmos à família, com toda a dignidade. Eu tinha 20 anos e também cumpri a minha escala de trazer o Armando às costas, na maca improvisada com dois troncos e panos de tenda".

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25279: Os 50 anos do 25 de Abril (2): O meu primo Luís Sacadura, furriel miliciano, natural de Alcobaça, hoje a viver nos EUA, estava lá, no RI 5, Caldas da Rainha, no 16 de marco de 1974, e mandou-me fotos dos acontecimentos (Juvenal Amado)