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terça-feira, 9 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25362: Trabalho sobre a formação dos Comandos na Guiné, publicado na Revista da Associação de Comandos, MAMA SUME - Parte I (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)



"Os Comandos na Guiné", artigo da autoria do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando, publicado na Revista MAMA SUME, da Associação de Comandos, e enviado ao Blog no dia 22 de Março de 2024:

“Comandos” do CTIG - Parte I

As chefias militares da Guiné cedo se aperceberam que havia necessidade de se dispor de uma tropa que fosse capaz de fazer a contraguerrilha, móvel, aligeirada, com pequenos efectivos, autónoma e agressiva, uma tropa diferente.

Uma tropa que, aliás, já estava a dar provas em Angola. Foi em Quibala, no norte de Angola, que foram preparados os primeiros grupos de “Comandos”.

Em Julho de 1963, o Comando-Chefe da Guiné solicitou à Região Militar de Angola que recebesse e formasse um pequeno grupo de militares. Na mesma altura, foi enviada uma circular para todos os batalhões estacionados na Guiné, convidando oficiais e sargentos a oferecerem-se como voluntários para os “Comandos”.

Muita gente se ofereceu. Depois das selecções foram escolhidos para o curso em Angola, o major Correia Dinis, os alferes Maurício Saraiva e Justino Godinho, os sargentos e irmãos, Roseira Dias e os furriéis Vassalo Miranda e o Artur Pires. E ainda, o Adulai Queta Djamanca e o Adulai Djaló, naturais da Guiné.

(...) “A cerimónia de apresentação teve lugar no gabinete do Chefe do Estado-Maior. Fomos recebidos pelo Major Chefe da 2ª Rep, que fez votos para que, da nossa estadia em Angola, tirássemos o máximo proveito. Pôs em evidência os inconvenientes da nossa vinda naquela altura, pois tinha terminado um curso e não se sabia ainda quando teria início o próximo. Deste desencontro de datas, resultariam, naturalmente, limitações à nossa instrução.

Na manhã seguinte foi-nos exposta, com algum pormenor, a situação actual na Região Militar de Angola. Foram-nos indicadas as zonas consideradas activas, semi-activas e as pacificadas.
Cabinda, devido à localização e ao reduzido efectivo das NT e um triângulo com um vértice em Bessa Monteiro e base na região dos Dembos (Nambuangongo, Zala, Beira Baixa, etc), eram as zonas com maiores preocupações. Considerava esta última mais difícil, porque os grupos IN tinham mais experiência e mostravam-se aguerridos.

As alterações ao programa da nossa visita começaram aqui e mantiveram-se sempre, até ao fim da nossa estadia.

Tivemos uma palestra de um capitão, instrutor dos comandos. Começou por abordar a questão da disciplina:

Nada de tolerâncias. Que os comandos falam sempre em sentido. Que o mínimo desleixo, dos superiores ou dos inferiores, não pode passar em claro. Que a mentalização era a menina dos olhos dos cursos de comandos. Um comando luta para matar e não para não morrer.

Indicou-nos os processos e as técnicas que utilizam para a mentalização.

  • Slogans, dísticos humorísticos nas paredes, nos lavabos, em todo o lado, até dentro do pão.
  • Uma aparelhagem sonora nas casernas e nos quartos de sargentos e oficiais.
  • Alocuções de mensagens gravadas, para ouvirem sempre que estejam a descansar. Devem ser feitos testes para avaliar o grau de assimilação.
  • Emulação entre os instruendos, entre as equipas e entre os grupos. Cerimónias com aparato para realçar as qualidades e os méritos dos indivíduos que mais se destaquem.

Abordou o conceito da parelha, da equipa e do grupo. Numa primeira fase, deve dar-se aos instruendos a liberdade para se agregarem como entenderem, depois as relações tendem para alguma estabilidade.

Reforçar essas amizades, estimulá-los a comerem na mesma mesa, participarem nos mesmos jogos, fazerem os mesmos serviços.

Falou depois na constituição do grupo:

1. O indivíduo que concorre aos comandos tem que estar situado entre os 20 a 30% melhores do contingente donde é originário.
2. Os comandantes dos grupos e os chefes das equipas devem situar-se entre os 10% melhores do contingente de quadros.
3. A selecção é a operação mais importante na formação dos comandos.
4. A instrução deve assumir um carácter selectivo.
5. Sendo o tiro um aspecto muito sensível, não deve haver restrições nesta instrução.
6. Todos os elementos devem ser especialistas no tiro de precisão e no tiro instintivo e todos devem estar aptos na utilização de lança-rockets.

No dia 26 de Outubro partimos para o quartel de Quibala, onde estivemos 6 dias em contacto com os 3 grupos de comandos recentemente chegados de uma operação. O tenente Abreu Cardoso deu-nos explicações pormenorizadas sobre a mesma.

Regressámos a Luanda e ficámos a aguardar o início da operação que deveria ter lugar nas margens do M’Bridge. Patrulhar as margens do rio entre as picadas de Evange e Quiaia. Uma operação de rotina.

Na 2ª operação fomos integrados no grupo de comandos do batalhão de artilharia. Montámos a emboscada nas margens do rio Loge. 3 dias. (...)

Se deste estágio na R. Militar de Angola não tirámos o máximo proveito, ele foi, pelo menos, muito útil. Útil porque das lições dos instrutores ficámos com a cabeça mais arrumada, com muitos ensinamentos que nos serão úteis se um dia viermos a ser instrutores de comandos. Útil ainda, porque do contacto que mantivemos com os grupos em operações, adquirimos experiência, vimos como aquela tropa se comporta no mato e as situações que vivemos serão para nós motivos de ensinamento.

Resta acrescentar que os oficiais da R. Militar de Angola estiveram sempre ao nosso dispor e se mais não fizeram, foi, de facto, devido à nossa visita ter sido efectuada numa altura pouco conveniente."

Considerandos, directivas e orientações. Mais de cinquenta páginas do bloco de apontamentos do estágio na R. M. de Angola do alferes Justino Godinho, um dos voluntários da Guiné.

Depois de regressarem do estágio operacional em Angola, o Comandante-Chefe da Guiné pensou em aproveitar esses militares e integrá-los nas forças que iriam executar a operação "Tridente", marcada para o início do ano de 1964.

Aproveitaram os elementos que, anteriormente, tinham respondido ao apelo de 'voluntários precisam-se para os comandos', quase todos pertencentes aos efectivos do BCav 490, a unidade base que iria executar a operação ao Como.

Havia a necessidade de reforçar os efectivos do Gr. Cmds. Para isso, sob a orientação dos “Comandos” regressados de Angola, os que se ofereceram iniciaram um curto período de instrução operacional com vista à participação na referida operação.
GrCmds na Operação Tridente – Ilha do Como.
Grupo de Comandos no Como.

Constituiu-se assim o grupo que interveio na operação “Tridente”, de 14 de Janeiro a 24 de Março, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, integrados nas forças à disposição do Batalhão de Cavalaria 490. O comando do grupo foi entregue ao alferes Maurício Saraiva e, ao alferes Godinho, aos furriéis Mário Dias, Artur e Miranda, a chefia das equipas.

Mário Dias, um dos participantes na operação, esclarece as razões da operação:

(...) "Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes eram relativamente pequenas e muito dispersas. Possuía numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.
Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou em qualquer outra embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.
Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha.

"Tornava-se imperiosa a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Comando-Chefe a Operação ‘Tridente’ na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 agrupamentos, num total de cerca de 1200 homens". (...)
Guerrilheiros do PAIGC no Como. Foto na Net. Com a devida vénia ao autor que desconheço.

(...) "O meu destacamento entrou na mata para fazer reconhecimento. Tínhamos desembarcado a 14 de Janeiro e esta operação foi a 19. Levei duas secções cerca de 25 homens. Andámos entre 100 a 150 metros e tivemos um choque frontal com uma força inimiga que calculei num numero de 60 a 70 homens. Foi um combate que durou 2 horas e meia. Foi um embate muito forte que me custou dois mortos e cinco feridos - cheguei a estar a dez metros de distância do inimigo. Tentei fazer um movimento de envolvimento pela direita, mas faltava-me massa de manobra. Pedi um reforço e enviaram-me um grupo de comandos - cerca de 20 homens - comandado por um extraordinário oficial, alferes Maurício Saraiva, e assim já pude fazer a manobra de envolvimento. Certo é que acabaram por retirar. Comigo estava o chefe de Estado-Maior da Defesa Marítima da Guiné, um capitão-tenente já com uma certa idade, Costa Santos. Era raro os altos comandos participarem nas operações, mas alguns iam, como era o caso deste (…) Alpoim Calvão Cmdt do Destacamento de Fuzileiros nº 8." (...)
Brá – Imposição dos crachás aos Grupos Fantasmas, Camaleões e Panteras.
Brá – Apresentação do Capitão Jaime Cardoso.
Desfile comandado pelo Capitão Jaime Cardoso.
Imposição de crachás aos Grupos Apaches, Centuriões, Diabólicos e Vampiros.
Apresentação pelo Capitão Saraiva ao Governador-Geral.

Publicamente reconhecida a contribuição que deram para o sucesso da operação, os “Comandos” receberam os crachás em cerimónia pública realizada em Bissau em 29 de Abril de 1964. Em finais de Julho e com a duração de 4 semanas começou a escola de quadros.

Entre 30 de Setembro e 17 de Novembro de 1964, realizou-se em Brá o 1º Curso de Comandos da Guiné[1]. Começaram cerca de 200, terminaram 78. “Fantasmas”, “Panteras” e “Camaleões” foram os nomes que escolheram para os grupos que saíram dessa formação.

E em Dezembro de 1964[2], o Boletim de Informação do E. Maior do Exército, relatava oficialmente as primeiras acções desses grupos:

(...)  "A actividade desenvolvida pelos grupos de “Comandos” conduziu a resultados muito remuneradores. Prova-se deste modo, a necessidade de se poder dispor de uma tropa com instrução especializada, apta a desempenhar missões que, pelas suas características, estão fora das capacidades das unidades normais.

Um grupo em actuação em Canjambari efectuou uma acção de muito interesse sobre um bando de terroristas, instalado a coberto do rio. Apoiados por um pelotão de auto-metralhadoras, os “Comandos” transpuseram o rio e lançaram-se ao assalto do IN, bem instalado no terreno e com bom e numeroso armamento. O IN foi desalojado, tendo deixado várias baixas no local.
Outro grupo efectuou uma emboscada na mesma região causando ao IN 2 mortos e vários feridos, tendo sido capturadas várias espingardas, pistolas-metralhadoras e granadas de mão.

Na zona de Tite, outro grupo realizou um golpe de mão a NE daquela povoação. Capturadas 8 espingardas, uma pistola-metralhadora e várias granadas de mão”. (...)


Nesse mês de Dezembro, numa reunião em Brá com os comandantes dos grupos, o Major Correia Dinis, preocupado com a aproximação das datas dos fins das comissões dos militares dos comandos, relia-lhes uma nota que endereçara ao Comandante Militar da Guiné:

"Exmº Senhor,
Por determinação de S. Ex.ª o General Venâncio Deslandes, apresentei-me na véspera do meu embarque de fim de licença na Defesa Nacional a fim de ser ouvido por aquele Exmº. Senhor.
A conversa baseou-se única e exclusivamente na organização de grupos de Comandos, seu interesse e modalidades de acção.

Para terminar, Sua Ex.ª o General mostrou-se interessado na organização de mais grupos de comandos no CTIG.

Informei que essa organização dependia não só do Centro Nacional de Instrução de Comandos em Angola, presentemente em organização, como também do necessário pessoal que deveria vir da metrópole para substituição, nos Batalhões, dos voluntários para os comandos.
Quanto a este segundo condicionamento, Sua Ex.ª esclareceu que o CTIG poderia pedir o envio desse pessoal.

No meu entender, a organização de novos grupos de comandos é da maior utilidade, tanto mais que a partir de Abril de 1965 os três grupos existentes começarão a ficar desfalcados com as desmobilizações.

Há que atender, porém, ao trabalho que o Centro Nacional de Comandos vai produzir na formação de novos grupos.

Estarão esses grupos prontos num futuro próximo e poderá o CTIG aproveitá-los em breve ou a formação desses grupos demorará ainda o bastante, que justifique como emergência, a formação de novos Grupos neste CTIG?

Assim, proponho:

1º- Que com a necessária urgência se procure obter da Região Militar de Angola as seguintes informações:
a). Qual o número de grupos de comandos que em 1ª prioridade serão atribuídos ao CTIG? Ainda se mantém a Companhia como foi pedido?
b). Qual a data provável da sua apresentação neste CTIG?
2º– Em face da resposta obtida, poderá então este CTIG pensar na formação ou não de novos grupos.
Em Brá, 26 de Novembro de 1964
O Comandante do Centro de Comandos, Correia Dinis, major."


Qual a resposta? Temos ainda algum tempo à nossa frente. Abril não vem longe, mas mesmo assim, também não é demasiado tarde ainda. Leu-lhes outra, que acabara de receber, a felicitá-los pela forma como elaboraram os programas do curso:

"Comando Territorial Independente da Guiné, Quartel-General, 3ª Repartição, ao
Sr. Director do CI de Comandos, Brá.

Encarrega-me Sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar de informar V. Ex.ª que aprovou os programas da Instrução de “Comandos” que acompanharam a nota em referência e manifestar o seu agrado pelo cuidado feito pelo Director de Instrução na elaboração dos respectivos programas.

O Chefe do Estado-Maior, sarrabiscos miúdos, o nome por extenso, Tenente-Coronel do CEM".

E uma cópia de uma outra que o Comandante Militar dirigira aos Comandos dos Batalhões:
"Por determinação do Comandante Militar, os comandantes dos batalhões em quadrícula devem não só prestar todo o apoio que lhes for pedido como também, eles próprios, devem proceder à escolha de voluntários, os quais devem dar garantias de permanência na Província pelo menos de 1 ano. Os “Comandos” não fazem qualquer outro serviço, actuam, em regra, durante 3 a 5 dias, e descansam dois ou três.

Trabalham, normalmente, em benefício dos Batalhões mas quando o CTIG o entender podem ser accionados directamente por este. (...) sarrabiscos iguais aos anteriores, o mesmo nome por extenso.

Execute-se."
Guarda de Honra – Palácio de Bissau.
Grupo de Comandos – Embarque rumo a Bafatá.

Entretanto os grupos foram-se mantendo em actividade, conforme atestam as numerosas citações de que foram alvo, apesar de actuarem com efectivos progressivamente mais reduzidos.

Para recordar os 9 camaradas mortos que tiveram numa tarde na zona de Madina do Boé, logo na semana seguinte os “Fantasmas” sobreviventes foram nomadizar para a zona do Oio. E terminaram em 6 de Maio de 1965, no sul, em Catunco, no acampamento chefiado pelo Pansau Na Isna, guerrilheiro do PAIGC que se tornou lendário.

Foi um golpe de mão como deve ser, entraram pelas barracas com o In a dormir e, como era de esperar, acordaram-nos. Retiraram eufóricos, um sucesso para finalizarem a guerra. No regresso alguém perguntou quem trazia o morteiro do inimigo. Ninguém o trazia! Duas equipas, metade do grupo, receberam ordem para o ir buscar. Voltaram para trás, ao acampamento que momentos antes tinham incendiado. Iluminados pelas labaredas, apareceram bem recortados aos olhos de alguns guerrilheiros, refugiados nas proximidades, que não tiveram dificuldade em mandar para o meio deles uma roquetada. Todos atingidos, um morto e nove feridos foi o saldo do regresso ao acampamento. A operação tinha recebido o nome de código “Ciao”.

Em Junho de 1965 começou o 2º curso de Comandos para oficiais e sargentos na Guiné.[3] E logo que terminou, começou a preparação dos novos grupos. Os nomes já estavam escolhidos, os Centuriões herdavam os sobreviventes dos Fantasmas do agora capitão Saraiva, os Apaches os dos Camaleões do alferes Godinho, os Vampiros o 4º grupo que não existia anteriormente e os Diabólicos absorviam o pessoal dos Panteras do tenente Pombo.

(continua)

(Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação do artigo no nossso blogue: CV/LG)
Porta de armas do quartel de Brá. Foto de V. Briote
O interior do aquartelamento de Brá. Messes em frente, à direita. Foto de Mário Dias.
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Notas de VB:

[1] - 23/7/64: início das actividades do Centro de Instrução Comandos em Brá. 03/8/64: início da Escola Preparatória de Quadros.24/8 a 17/10/64: Iº Curso de formação dos GrsCmds (Camaleões, Fantasmas e Panteras), com o apoio de instrutores e monitores do CI25/RMA e do GCmds "Gatos"/BArt 400/R.M Angola, que sob o comando do alferes Horácio Valente (morto mais tarde em Moçambique) permaneceu na Guiné entre 22 Set. e 28 Dez.1964, participando em três operações no sector do Batalhão de Artilharia 645.

[2] - De 20/10/64 a Junho de 1965: actividade operacional dos Grs. Comandos

[3] - Em meados de 1965 o Major Correia Diniz terminou a sua comissão tendo sido substituído pelo seu Adjunto, Capitão Varela Rubim. Nesta altura o QG decidiu extinguir o Centro de Instrução de Comandos e criar a Companhia de Comandos do CTIG com data de 1 de Julho.
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quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24177: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte III: A nossa obrigação de contribuir para a desmistificação das inverdades e meias-verdades que se contam (Leopoldo Amado / Mário Dias)


Guiné > Bissau > A pacata cidadezinha colonial do início dos anos 60. A Praça da República. Postal da época. Cortesia de João Varanda, ex-fur mil, CCAÇ 2636  (que esteve em Có/Pelundo e Teixeira Pinto, 1969/70, e depois Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1970/71).


Guiné > Bissalanca > 1959 >   Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata)  [nº 1, a amarelo]. O avião era, naturalmente, da Air France [5].

O João Rosa [2], o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses; morreria no hospital, na sequência da sua prisão e tortura pela PIDE, em 1961, segundo informação do Leopoldo Amado], está na segunda fila à direita ; à sua frente, o segundo da direita é o Toi Cabral [António da Luz Cabral, irmão do Luís Cabral e meio-irmão do Amílcar Cabral] [3]. 

Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau, entre eles, talvez o Mário Dias, ou talvez não: não conseguimos ainda identificá-lo, mas  já lhe pedimos em tempos  para "validar" esta legendagem... Ele pode (ou não)  ser o elemento que está a seguir ao nº 4, e que se apresenta em calções e meia branca; em 3 de agosto de 1959 ele estava a acabar a recruta, tendo frequentado o 1.º CSM - Curso de Sargentos Milicianos, realizado na Guiné.  Parece que foi na altura em que ele estava na tropa que a NOSOCO encerrou as suas portas, conforme se depreende do que ele escreveu no poste P268, de 14/11/2005:

(...) "Já agora, e apenas também como curiosidade, eu fui trabalhar para o Sindicato porque, enquanto estava no serviço militar (com o Domingos Ramos, Rui Jassi, Constantino Teixeira, etc. etc.), a NOSOCO, firma comercial francesa onde eu trabalhava, encerrou a sua actividade na Guiné.

A sede da NOSOCO ficava junto ao rio, estendendo-se as traseiras para a actual Rua Guerra Mendes, mesmo junto a um dos baluartes da Amura. Ao lado era a PSP, comandada pelo major Pezarat Correia, pai do actual brigadeiro (ou general?) ligado ao 25 de Abril de 1974. Este edifício foi, durante a guerra, sede e armazém da Manutenção Militar. "(...)

O quarto elemento conhecido do grupo [4] é, a contar da esquerda, o Armando Duarte Lopes, o pai do nosso amigo Nelson Herbert, e velha glória do futebol guineense... (Esteve em 1943 no Mindelo, sua terra natal, integrado numa força expedicionária, vinda do continente, que veio reforçar o sistema de defesa da Ilha de São Vicente durante a II Guerra Mundial; viveu depois, trabalhou e casou em Bissau. Conhecido como o Armando 'Bufallo Bill', seu nome de guerra, foi o melhor futebolista da UDIB, e do Benfica de Bissau, tendo sido nternacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa...).

Recorde-se que o apelido Herbert, no caso do nosso amigo Nelson, antigo jornalista na VOA (Voz da América), vem do avô materno francês, que foi o representante local, na Guiné, da CFAO - Compagnie Française de l'Afrique Occidentale, fundada em 1887, e que, com a NOSOCO e a SCOA, foi um das peças importantes do sistema colonial francês.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006), Todos os direitos reservado. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Temos vindo a recuperar alguns postes com versões de contemporâneos dos tristes acontecimentos de 3 de agosto de 1959, a que o futuro PAIGC e a historiografia com ele alinhada chamaram, inapropriadamente ou não,  o "massacre do Pidjiguiti". Uma das versões é do nosso camarada Mário Dias, ainda a fazer a recruta, em Bissau, nessa data, e a outra é do Luís Cabral, que trabalhava então na Casa Gouveia como guarda-livros (*).

É possível que o assunto pouco interesse  aos nossos leitores, e nomeadeamente aos antigos combatentes que só conheceram a Guiné dos anos 60 e 70... Mesmo assim, e tendo em conta a divergência na descrição e interpretação dos factos, é bom que se acrescentem mais algumas achegas, incluindo as do historiador guineense, e nosso saudoso amigo Leopold0 Amado,  precocemente desaparecido (morreu de Covid-19 em 2021,  com pouco mais de 60 anos).

Lembrando-nos que tudo tem o seu verso e o seu reverso, Leopoldo Amado (1960-2021) (que era doutorado em história pela Universidade de Lisboa) escreveu o seguinte (em 16/2/2006) (**)  s0bre o depoimento do Mário Dias:

(...) A importância do texto que Mário Dias produziu sobre o Massacre de Pindjiguiti ou assim chamado, interpelou directamente a minha sensibilidade de interessado nessa guerra enquanto historiador guineense, mas também enquanto cidadão do mundo, pelo que aqui fica a minha promessa de nos próximos dias produzir um comentário crítico sobre o mesmo, não obstante ver-me antecipadamente e desde já na contingência de dar os meus vivos parabéns ao autor por mais esta importante contribuição que, além de animar um debate que reputo construtivo e altruísta, ainda possui o condão – assim espero – de trazer ao de cima senão toda a luz e toda a verdade (porque imossível, ao menos irá contribuir para a desmistificação histórica dos aspectos próprios dessa guerra, reduzindo consequentemente as zonas cinzentas, as inverdades ou as meias-verdades que essa recente historiografia necessariamente comporta, porquanto é igualmente recente o correspondente sujeito histórico. (...)


2. Texto do Mário Dias (originalmente publicado no poste P572, de 26 de fevereiro de 2006) (***):

Caro Luis

Estive a ler atentamente, e com a compreensível dose de emoção, o texto que o Leopoldo Amado anexou à sua mensagem.(**)

Começo por dizer que tão excelente trabalho só poderia vir de alguém que, tal como Leopoldo Amado, seja possuidor de uma extraordinária cultura, conhecimentos académicos e poder de síntese.

Fiquei mais rico e esclarecido sobre as movimentações que existiam no seio dos nacionalistas guineenses, que eu sabia que existiam mas cujos recortes me escapavam (tal como disse em recente poste).

Assim, este texto lança um pouco de luz sobre o desconhecimento daquilo que "do outro lado" se passava e confirma o que várias vezes tenho referido: o empolamento na informação dos acontecimentos por parte de ambos os contendores.

Do PAIGC, pela necessidade de afirmação perante a comunidade internacional e apoio psicológico aos seus combatentes. Das nossas tropas... bom, aqui a motivação (isto não passa de uma opinião pessoal) parece-me outra: a vontade de "mostrar resultados" subindo no conceito dos superiores hierárquicos e com isso... todos sabemos. Que me perdoem os muitos que sempre foram verdadeiros nas suas informações e relatórios operacionais. Felizmente, constituem a maioria.

Porém, o resultado prático traduziu-se no exagerar dos feitos praticados, principalmente no número de baixas causadas e, conforme muito bem refere Leopoldo Amado, facilmente chegamos à conclusão que não podem ser as apontadas pelo nosso Estado-Maior.

Outro aspecto referido neste texto prende-se com a intensa actividade existente nos movimentos nacionalistas que vieram, na prática, a desembocar no PAIGC e que, fiquei agora a saber, é bastante posterior ao evento do Pidjiguiti. A minha admiração - que já era muita - pela eficácia conseguida e pelo sigilo de todas as movimentações aumentou bastante mais. Tudo "me passou ao lado".

Em jeito de "desculpa esfarrapada" por tamanha ignorância e ingenuidade,  tenho a meu favor a pouca idade à época dos factos. Só queria divertir-me como é próprio da idade. Assuntos tão transcentes estavam, confesso, fora das minhas cogitações.

Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

Pareceu-me supérfluo estar a nomear a constituição dessa companhia (o que, aliás, nem conseguiria) e que era formada na sua esmagadora maioria por soldados africanos. Não me moveu qualquer espécie de reserva ou tentativa de manipulação com "meias verdades", defeito que não faz parte dos muitos que tenho. 

Podem todos crer que se alguma omissão ou menor exactidão houver em comentários meus, passados ou futuros, será apenas e exclusivamente por compreensível falha de memória.

Um grande abraço para todos os tertulianos.
Mário Dias

PS - Antes de enviar este mail, fui dar uma espreitadela ao blogue e vi que já começaste a postar o notável texto do Leopoldo Amado. Talvez seja melhor aguardar a publicação integral do mesmo, antes deste meu desabafo, caso aches que deva ser publidado.

Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). 

O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau.

[ Fixação / revisão de texto / negritos: L.G.]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


24 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

(**) Vd. postes de;

16 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P525: Pidjiguitgi, o verso e o reverso da verdade:comentários ao post do Mário Dias

Vd. também postes de:

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

Fogo (e legenda) © Paulo Salgado (2005).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Ponte-cais de Bissau e não cais do Pidjiguiti (que ficava mais à direita e onde atracavam as embarcações de pesca e de transporte de cabotagem),

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea da Ponte Cais, e de parte da zona ribeirinha da Bissau Velha: à direita o edifício da Alfândega, em frente a praça e a estátua de Diogo Gomes e portão de armas e as muralhas (lado sul) do forte de São José da Amura (coberto de seculares poilões)... Do lado esquerdo (e já não visível na imagem) ficava o cais do Pidjuiguiti.

A ponte-cais do porto de Bissau (obra emblemática do governo de Sarmento Rodrigues, remontando o início das obras a julho de 1948) é inaugurada em 1953 por Raúl Ventura, subsecretário de estado do Ministério do Ultramar, sendo Sarmento Rodrigues ministro da tutela.

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).


Guiné > Bissau > s/d > Vista  da ponte-cais (ou porto) de Bissau, a partir da praça Diogo Gomes).

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).



Guiné > Bissau > s/d  [c. 1960/70] > Pormenor de monumento a Diogo Gomes (às vezes confundido com Diogo Cão) e Edifício das Alfândegas > Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 136". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Bilhetes postais: Colecção do nosso camarada, natural do concelho de Leiria, Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72,  Mansoa, 1972/74),



Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho, com as ruas rebatizadas pelo PAIGC > 1975 > Planta da cidade > Localização de: (i) fortaleza da Amura; (ii) cais ou porto  do Pidjiguiti (à esquerda); e (iii) porto de Bissau (à direita)... Alguns leitores confundem, por vezes, a ponte-cais de Bissau com o cais do Pidjiguiti (para sempre associado aos acontecimentos de 3 de agosto de 1959).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

1.  Os graves e trágicos acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no cais do Pidjiguiti, são uma página triste na história da presença portuguesa em África. Nunca deveriam ter ocorrido. Como já o dissemos, as autoridades da época, a Casa Gouveia e o seu gerente António Carreira ficam mal na "fotografia da História"... Mas passados mais de 60 anos continuam a ler-se versões díspares, nomeadamente sobre o que realmente aconteceu, a sua origem, processo e consequências.

Há poucos relatos contemporâneos.  E não há imagens, ao que parece (*). É importante continuar a confrontar, serena mas criticamente, as diferentes versões. Uma delas é a do nosso camarada Mário Dias que esteve lá, integrado numa força militar, uma companhia de recruta que foi desviada no seu regresso ao quartel de Santa Luzia, depois de prestar honras militares, em Bisslanca, a subsecretário de Estado da Aeronáutica, a caminho de Angola: os recrutas levavam mausers sem munições, não tinham quaisquer armas automáticas (**). 

A outra versão é a do Luís Cabral (LC) , na altura guarda-livros da Casa Gouveia, e que irá sair clandestinamente do território alguns meses depois, no início de 1960. 

Como  futuro dirigente do PAI (e depois PAIGC), tem uma leitura "enviesada" do que aconteceu, mas de que foi também testemunha ocular (parcial, como o Mário Dias).  Todavia, há erros factuais na sua versão, escrita vinte e tal anos depois, já no exílio: consta do seu livro "Crónica da Libertação" (Lisboa, O Jornal, 1984). Excertos dessa versão já foram aqui em tempos publicados (***). Mas justifica-se voltar a reproduzir uma parte e compará-la com a versão do Mário  Dias.

Excertos de Crónica da Libertação, 

de Luís Cabral (1984) (pp. 65-73)(**)

(i) Reivindicações laborais do pessoal das docas e do transporte de cabotagem

(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 75 e 150 euros, respetivamente]; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado". Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 7,50 euros] , quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

(ii) Contexto político, interno e externo

(...) A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [PAI] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

(iii) A greve

(...) A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. 

Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. 

Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

(iv) O ultimato aos grevistas por parte do António Carreira, gerente da Casa Gouveia

(...) Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia [referência ao cabo-verdiano António Carreira] , mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. 

Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

(v) Reacção das autoridades

(...) As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

(vi) Resposta dos grevistas

(...) Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heroicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

(vii) Tiros, mortos e feridos

(...) Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. 

Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.

(viii) Saída dos escritórios da Casa Gouveia

(...) Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. 

Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

(ix) No apartamento 
 [do LC, que pertencia à Casa Gouveia] 

(...) Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco 
 [BNU] onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

(x) Aproveitamento político por parte do PAI

(...) Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. 

Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. 

Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. 

(xi) O poder de influência do António Carreira que manda soltar o Carlos Correia

(...) No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides 
[Pereira, chefe da Estação Telegráfica] tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

(xii) Na iminência de ser preso pela PIDE, o Carlos Correia foge para Dacar

(...) Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto.

 O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo — disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.» (...)

(...) O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.

(...) Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos.

(...) À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7,30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda. (...)


Comentário do A. Marques Lopes (***):

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAI / PAIGC. Como refere o Luís Cabral (****), a páginas 75 e 76 do seu livro:

(...)   Na reunião com o Amílcar (19/9/1959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo.  (...)

[Transcrição: AML  / Seleção, revisão e fixação de texto, subtítulos, negritos e notas em parênteses retos: LG]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959


(...) "Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).


(***) Vd. poste de 18 de fevereeiro de 2006 > 18 de fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)

(****) Luís Cabral (Bissau, 1931 - Lisboa, 2009), meio-irmão de Amílcar Cabral (Bafatá, 1924-Conacri, 1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, filho do mesmo pai, o professor do ensino primário  Juvenal Cabral. Viria a ser sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo-verdiana do PAIGC. Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de Estado...

Publicou em 1984 as suas memórias (que vão da infância até à morte de Amílcar Cabral): "Crónica da Libertação"(Lisboa, O Jornal, 1984)

Luís Cabral era empregado, guarda-livros, da Casa Gouveia, do Grupo CUF,   em 3 de Agosto de 1959. E dirigente do PAI, na clandestinidade. Nessa data, o Amílcar Cabral estava em Angola, em trabalho, como engenheiro agrónomo, não tendo ainda passado à clandestinidade. Passou por Bissau em 19/9/1959 para se reunir  com o pequeno grupo dirigente do seu partido, que então se chamava PAI.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959