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sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25416: Os nossos seres, saberes e lazeres (624): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (150): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
É um museu de grande beleza, e não tenho qualquer pejo em dizer que podemos observar neste espaço alguns dos quadros fundamentais da História de Portugal, o nosso hino nacional conclama-nos a gritar às armas, e elas estão aqui desde tempos antigos até aos tempos próximos. Consta que o museu se irá aprimorar com um espaço dedicado às guerras que travámos em África, faz todo o sentido, importámos muito armamentos mas também produzimos pela nossa indústria, basta lembrar a Metalúrgica Duarte Ferreira, dali saíram viaturas que percorreram picadas africanas. A Academia Militar reserva espaço a quem nela se preparou e se glorificou, essa visita foi feita e mostrados sinais de que a Academia não esquece alguns dos seus heróis. O que talvez vá aumentar a importância deste Museu Militar é revelar os armamentos e o modo de viver dos que combateram por longos anos, resta dizer que o Museu Militar de Lisboa, pelo seu esplêndido acervo, bem pode abrigar a memória desses tempos que conduziram ao fim do império e ao enlaçamento com países de língua oficial portuguesa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (150): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade - 2

Mário Beja Santos

Tive sorte no dia da visita, o Museu Militar de Lisboa estava aberto para uma cerimónia, as salas imbuídas numa luminosidade velada, parecia que tinha as salas por minha conta, há para ali espaços que têm o poder magnético para quem andou com as armas na mão e ouviu explodir umas bombardas à volta, é o caso deste espaço da Primeira Guerra Mundial, é uma museografia que tem lampejos cinematográficos. Aqui me detive, a pensar nas trincheiras, inevitavelmente acudiu-me à memória o arame farpado e todas aquelas noites ensombradas pela expetativa de uma flagelação.

Lembranças da Primeira Guerra Mundial, combatemos a Flandres, em Angola e Moçambique
Para além da extraordinária coleção de peças de artilharia depositadas no Pátio dos Canhões, há uma sala do Museu Militar de Lisboa que alberga aquelas armas que infundiram respeito (o melhor é dizer terror) no Império Português do Oriente, a sala é um espetáculo de policromia.
A meia luz da sala produziu estas vitrinas que parecem incendiadas, é um longo corredor com um acervo que permite dizer que este Museu Militar é uma outra face da História de Portugal, aqui estão depositados e expostos armamentos e os diferentes tipos de materiais que foram usados pelas forças terrestres e armadas, houve neste palácio um forte investimento em talha dourada, pinturas murais e estatuária. Li num roteiro dos museus militares que o acervo, inicialmente organizado em 1842, no Real Arsenal do Exército, pelo barão de Monte Pedral, constituíra-se com a finalidade de guardar e conservar material que perdera relevância. Qual quê! Para aqui foi drenado dinheiro e talento. Fizeram-se decorar novas salas com intervenções de Adriano Sousa Lopes, Columbano, Malhoa, Carlos Reis, Veloso Salgado, entre ouros. A história militar de Portugal confunde-se com a história de Portugal, no seu todo.
Mais um exemplo de tetos enriquecidos com homenagens, onde não faltam elementos de apoteose.
A luminosidade precária permite estes reflexos artificiais, tons de aquário, de ondulação turquesa. Possuímos muitas memórias militares em diferentes museus, até núcleos de museus municipais, não nos falta até a fragata de D. Fernando II e Glória e museus de forças especiais, como os Fuzileiros. Mas não há espetacularidade como a desta casa, digamos que aqui prima o chamado bom gosto de uma época, os diretores e os artistas convocados não se pouparam a procurar dar o seu melhor nas novas salas, e é bom referir que o primeiro diretor do museu, general José Eduardo Castelbranco, em que está patente toda a sua marca, o vigor do seu projeto.
O Velho do Restelo, quadro de Columbano
Os versos camonianos que guiaram o pincel de Columbano para este seu admirável quadro
Apoteose, sempre
O museu não esqueceu os Templários, de que a Ordem de Cristo foi herdeira
D. João V, o Magnânimo, não podia ser esquecido, foi ele que deu ordem para se criar a Fundição de Cima e nomeou o arquiteto francês Fernando de Larre, deve-se-lhe, entre outras intervenções, o imponente pórtico da entrada principal, onde ganha relevo a triunfal escultura de Teixeira Lopes
Em permanência a sumptuosidade do barroco, o que D. João V deixou inacabado foi concluído o que faltava no tempo do Marquês de Pombal, coordenou um tenente-general francês, aqui temos o medalhão do rei D. José.
A sumptuosidade sobe pelas paredes até ao teto, o tema é alegórico, aquela senhora no pódio bem podia ser Atena, o ponto curioso é o uso de elementos neoclássicos como as duas colunas ao fundo desta cena onde não falta a rendição ao saber e ao poder, eram tempos do absolutismo.
Outra perspetiva do Pátio dos Canhões, por cima temos a Rua do Paraíso, que desemboca no Largo de Santa Clara, aqui espero vi para visitar a Casa dos Gessos. E a encimar a fotografia pode ver-se melhor o zimbório do Panteão Nacional. Está prometido que numa primeira oportunidade vou até à Casa dos Gessos e aos núcleos museológicos das Oficinas Gerais do Fardamento e Equipamento, núcleos que funcionam no Largo de Santa Clara, sobretudo ponho muito interesse no segundo, estão seguramente lá os nossos fardamentos e equipamentos, é sempre bom lembrá-los.
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Nota do editor

Último post da série de 13 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25380: Os nossos seres, saberes e lazeres (623): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (149): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25268: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte II: vídeo (8' 43'') da intervenção do cor 'cmd' ref Raul Folques

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Raul Folques e Rui A. Ferreira (Sá da Bandeira / Lubango, 1943- Viseu, 2022)


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Intervenção do cor 'comd' ref, Raul Folques

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > O nosso editor, Luís Graça,  à esquerda, gravando em vídeo a intervenção do cor 'comd' ref, Raul Folques

Foos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Em primeioro plano, oss nossos camaradas, membros do nosso blogue, João Parreira (de costas) e Mário Dias, ex-comandos do CTIG (1964/64),contempporâneos do Amadu Djalõ; em segundo plano, entre os dois,   comandante Alpoim Calvão  (1937-2014).

 Foto (e legenda): © Luís Graça  (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 >  Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). Intervenção do cor  'cmd' Raúl Folques,  cmdt do Batalhão de Comandos da Guiné  entre 28jul73 e 30abri74. 

 Vídeo (8' 43''): © Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes (conta do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


 


Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 




O autor por volta de meados de 1966.


1.  O lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando mo Museu Militar alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos: o JERO (José Eduardo Oliveira), o Coutinho e Lima, o José Manuel Matos Dinis, o Rui A. Ferreira...

Estamos  recordar alguns dos melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou, na altura,  nada mais mais nada menos do que cinco postes, e nomeadamente as intervenções dos três oradores: deppois do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeiro (*), segue-se o cor 'cmd' Raul Folques, que foi cmdt do Amadu Djaló, em 1973, no Batalhão de Comandos da Guiné. Infelizmenete não temos o texto em formato doc, apenas em vídeo.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >  Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >

 Um guineense, Bamba, antigo dirigente do partido Resistência da Guiné-Bissau / Movimento Bafatá, e antigo ministro da Saúde Pública (Partido criado em 1986 como Movimento Bafatá, na sequência da execução de antigos dirigentes do PAIGC como Carlos Correia e Viriato Pã; nas primeiras eleições multipartidárias, realizadas em 1994, o RGB-MB conquistou 19 dos 100 lugares da Assembleia Nacional; em 1999, tornou-se o 2º maior partido da Guiné-Bissau com 29 lugares dos 102 lugares da Assembleia Nacional). Na altura, em 2010, devia viver em Lisboa. ~

Na foto, Bamba cumprimenta a Giselda, ladeada pela Alice e pelo Miguel Pessoa.  O Bamba era amigo pessoal do Agostinho Gaspar, nosso tabanqueiro e membro da Tabanca do Centro.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010  >Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Os nosos 'tabanqueiros' Alberto Branquinho e o Coutinho e Lima (1936-2022),  




Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >   Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >O Rui Alexandrino Ferreira,  ten cor inf ref, ex-cap mil da CCAÇ 18 (1970/72), membro do nosso blogue, veio expressamente de Viseu, para assistir ao lançameno do livro do Amadú. Em contrapartida, teve a agradável surpresa de encontrar ali, por acaso, o Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec Auto da  CCS / BCAÇ 3852,   do batalhão  que estava então sediado em Aldeia Formosa (1971/73). O Manuel Gonçalves, companheiro actual da minha amiga Tuxa, estava em vias de se tornar membro da nossa Tabanca Grande. Um dos soldados do seu pelotão era o Silvério Lobo, membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca de Matosinhos. Os dois já se voltaram a encontrar.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25265: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte I: texto da intervenção do Nuno Rogeiro

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > A sessão foi presidida  pelo presidente da Associação de Comandos, Dr. José Lobo do Amaral.

A apresentação do livro do Amadu Djaló (o segundo da mesa, a contar da esquerda para a direita), esteve a  cargo de três oradores: o cor 'cmd' ref Raul Folques  (o último comandante do Batalhão de Comandos da Guiné), o cor inf ref e escritor Manuel Bernardo (o último da ponta, do lado direito) e ainda o jornalista e analista político Nuno Rogeiro (o primeiro da ponta, do lado esquerdo).  Vamos relembrá-las aqui, às três intervenções, começando pela do Nuno Rogeiro.

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >Sessão de  lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). > A brilhante intervenção do Nuno Rogeiro, que se reproduz a seguir.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Aspecto geral da assistência, que encheu a ala central das famosas caves manuelinas... Na primeira fila, do lado direito, reconhecemos a dra. Maria Irene, esposa do Virgínio Briote bem como o comandante Alpoím Calvão, além do representante do Chefe do Estado-Maior do Exército. A meio, na outra ala, a filha e o neto do Amadu Djaló.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa,  2010). O Autor, Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, e o presidente da Associação de Comandos, Dr.  José Lobo do Amaral... Nas suas palavras de abertura, este último  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido possível esta edição"... 

No final, também nos  agradeceu a divulgação do evento,  dada pelo nosso blogue,  e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem como  pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


 

Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 



O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


1. Foi um dia grande para o nosso Amadu Djaló, o da apresentação do seu livro, no Museu Militar, em Lisboa, no 15 de Abril de 2010. Mas também para o seu amigo, camarada e editor literário, Virgínio Briote.

Vamos recordar os melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou nada mais nada menos do que cinco postes. 

O livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.)  foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos).

Vamos relembrar aqui as intervenções dos três oradores (Nuno Rogeiro, Raul Folques, Manuel Bernardes), começando pela do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeir0 que consideramos a mais original e estimulante nota de leitura do livro, do autor e da sua história de vida.


NO FIM DAS GUERRAS

por Nuno Rogeiro


A guerra e as suas entranhas, em terras próximas ou estranhas, sempre fascinaram, revoltaram e mobilizaram o homem.

Anarquistas e conservadores, aristocratas e operários, fascistas e antifascistas, descamisados e oficiais de monóculo, sobreviventes das trincheiras e gaseados, soldados de assalto e feridos de morte, poetas e prosadores, pintores e pensadores, muitos investiram as mais nobres energias na reflexão sobre o campo de batalha.

Este pode ser visto como uma simples planície da técnica, da era da espada ou da era de Urânio. Ou ser antes olhado, de forma que se diria “existencialista”, como um vale de lágrimas e revelações, onde se morre e se nasce, mas sobretudo onde habitam homens e mulheres comuns. E onde residem, soberbas ou incógnitas, evidentes ou traiçoeiras, contínuas ou explosivas, a violência e a morte.

Tivemos grandes obras sobre este continente trágico, onde vemos já não como um espelho baço, mas face a face. Como “As Tempestades Aço” de Jünger, como “O Fogo”, de Henri Barbusse, como E.E. Cummings em “O Enorme Quarto”, ou o “Entre Parêntesis” de David Jones, como o “Ronge Maille Vainqueur”, de Lucien Descaves, qualquer livro sobre guerra perturba, alerta, impede a normalidade. E pode despertar, para lá do desespero, a esperança.

É o caso do livro que nos traz aqui. Relato de guerra, seco e sem adornos desnecessários, este volume de Amadu Djaló, escrito em português escorreito e de lei, é tanto uma história de morte como de vida. De tempo de matar e de proteger. De tempo de golpes de mão, executados com precisão e destemor, e de lágrimas por uma criança perdida, em Darsalame Baio, na margem, literalmente na margem: à beira do rio Burontoni, à beira de sentença salomónica.

Relato de vida militar, da obediência perinde ac cadaver, também é uma fiel e lúcida exposição das dúvidas dos combatentes, quando confrontados já não com a obediência, a lealdade e a técnica, mas com os juízos políticos, a diplomacia e as relações internacionais.

Este clima de homens divididos encontra-se na breve descrição do prelúdio à operação “Mar Verde”: resgatar companheiros presos fazia parte da missão, mas o que dizer de levar a cabo um acto de guerra em território estrangeiro?

Estaríamos perante uma violação da soberania alheia, mesmo se de estado hostil, ou antes diante de uma espécie de auto-defesa legítima? Seria “regime change”, ou contra-ataque a quem nos agredia, ou oferecia bases a quem nos ofendesse?

“Obedientes como cadáveres”, como diria Inácio de Loyola. Mas pode um cadáver reflectir, se a alma, prestes a partir, ainda o habitar?

Relato de guerra, este volume, o primeiro de memória, é antes de mais um admirável retrato, de história oral e testemunhos vivos, sobre a humanidade, os seus encontros e desencontros, amores e desamores.

É a história dos condutores sem carta, dos oficiais à estalada em frente de soldados envergonhados, dos civis ambulantes que levavam o cinema às tabancas, de um ataque de abelhas que abatem um homem rijo, de romances ao luar, de misérias na estrada. Um relato de delicadeza e pudor.

Pudor na descrição do que hoje diríamos violência sexual, violência racial, violência animal. O autor, homem bom e reservado, é também bom e reservado, na visualização da desumanidade: o oficial que diz que “preto é como a tartaruga” não é “racista”, mas apenas “um branco mau”.

Este é também um livro sobre o terrível abandono, sobre a inutilidade, sobre o esquecimento. Sobre o absurdo.

Cito, talvez imprecisamente e sem consultar o original, um poema de um dos nossos grandes vates, António Manuel Couto Viana:

“A minha Pátria alçou o braço
Pátria pacífica e pequena
Baixou-o logo de cansaço
Foi Pena

“Cedo arrasou a altiva torre
Que ergueram todos
De mãos dadas
Agora sei como se morre
Por nada”


Esta obra, relato de guerra e do pós-guerra, relato da paz e da pós-paz, é também o mapa deste desencanto, dos combates declarados inúteis, dos combatentes declarados redundantes, dos feridos declarados descartáveis, dos órfãos e viúvas declarados dispensáveis, dos mortos declarados inexistentes, por regulamento ou decreto.

Mas é também uma história, se bem que só esboçada, de reconciliações e de abraços. Abraços e reconciliações às vezes traídos.

O autor encontra-se, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com o cabo-verdiano Antero Alfama, quadro do vencedor político, o PAIGC. Os compromissos feitos pelo último são de transição generosa, de integração de todos os guineenses, sem vinganças ou retaliações, sem tribunais especiais ou valas comuns, sem julgamentos secretos e tiros na nuca, sem o “N’kré vivé”, o processo de choques eléctricos, sem asfixia colectiva, em antigos depósitos de munições. Promessas rasgadas pelo processo “revolucionário” em curso em Bissau, mas sobretudo pela iluminação sanguinolenta de algumas vanguardas.

Não vale hoje a pena, se calhar, chorar mais sobre as vidas derramadas, nesse intervalo onde Portugal, independentemente de credos, doutrinas, regimes e pessoas, não fez tudo o que devia, para proteger os que combateram em seu nome.

Não valerá a pena chorar mais sobre o “incidente”, que levou à execução de centenas de comandos, milicianos, civis, em Farim, Cumeré, Portogole, Mansabá, a partir de 1974.

Não valerá mais a pena chorar sobre a aplicação do artigo 86 da Lei de Justiça Militar do novo partido no poder. Não valerá mais a pena chorar sobre aqueles que preferiram ficar na Guiné, a sua terra, em vez de fugir ou de pedir colocação nas instâncias burocráticas de Lisboa.

Não valerá mais a pena chorar por aqueles que aguardavam por oportunidades para continuar a servir a Guiné, ou para serem julgados por crimes de guerra, com todas as garantias e recurso à verdade.

Não valerá mais a pena chorar por este processo. Mas será uma vergonha não o lembrar. Será uma vergonha ter vergonha de o lembrar.

Este livro é também, na tradição dos grandes relatos de combatentes, de tropas de escol ou de guerrilhas, de milícias ou de regimentos fardados a rigor, de irregulares ou de exércitos convencionais, este é também um relato sobre sonhos e premonições, sobre lendas e o outro mundo, sobre conchas mágicas e aparições.

É o caso de João Bacar Jaló, que fecha os olhos, e sabe o que vai acontecer nesse dia.

Nessa zona da mente onde desembarcamos do sono para o sonho, fazem-se também episódios onde imaginamos a morte, às tantas de tal, sem falta.

E lá está ela, pontual no encontro, no fim da picada. Ela, a velha ceifeira, que vem buscar os últimos guerreiros.

É também este um relato sobre acções militares das forças especiais, numa guerra que hoje se chamaria “de baixa intensidade”, mas que teve picos próximos de confrontos convencionais, com emprego de todos os meios, da aviação à artilharia, dos meios navais ribeirinhos à ofensiva em linha contra quartéis e bases.

É, no plano técnico, um bom relato, se bem que parcial e provisório, de incidentes localizados do “nevoeiro da guerra”, com descrições exactas de tácticas e princípios, doutrinas de contra-insurreição e aquilo que a prática, e as lições aprendidas, fazem aos manuais.

É a história da missão, talvez impossível, de ganhar corações e espíritos, num conflito subversivo, às vezes de armas combinadas, com os Harvard e os Alouette a zunir sobre as cabeças dos infantes, às vezes continuação de acções de polícia, de missões de assuntos civis, de operações psicológicas.

Às vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, com “vítimas colaterais”, de um lado e de outro. Como diz o autor, no confronto verbal com o comandante guerrilheiro Pedro Nazi, logo a seguir ao cessar-fogo: “Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos, nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido” (p.205).

Neste sentido, o livro cumpre também o preenchimento da lacuna sobre relatos pessoais, ou de grupo, sobre pormenores operacionais na África Lusófona, do ponto de vista das forças armadas portuguesas e do seu inimigo.

Essa lacuna, que se foi preenchendo, nas últimas décadas, com documentos e relatórios de estado-maior, com romances de base realista, com fragmentos e com monografias, tem ainda muito poucas contribuições dos militares africanos, de um e de outro lado da barricada.

Não seria impensada a criação de uma instituição, no seio da parte da CPLP que directamente viveu as guerras africanas, que pudesse, mais activamente, colmatar a brecha.

Oio, Canjambari, Cunacó, Antuane, Cameconde, Bedanda…Nestas páginas pode-se também deambular pela Guiné desconhecida, uma terra onde as famílias, as raízes, os clãs e os laços ultrapassam fronteiras, e se espraiam para além dos estados definidos pelas regras das administrações europeias, ou dos orgulhos nacionais pós-europeus.

Este é assim, ainda, num tempo que preza os relatos de viagem e as descobertas das partidas do mundo, uma espécie de introdução à Guiné, à querida Guiné de todos os portugueses, tenham ou não deixado o seu melhor naquela terra.

À querida Guiné que – penso poder falar em nome de todos os presentes – continuamos a querer soberana, desenvolvida, feliz e capaz de repartir riqueza pelos seus filhos.

À querida Guiné que, acima de golpes de estado e revoluções, pronunciamentos e discursos com má pronúncia, sublevações e homicídios, narcotráfico e cleptocracia, ameaças estrangeiras e cancros internos, tem suficientes filhos, talentos e energias para erguer um futuro diferente. Um futuro melhor.

Porque este é também um livro para o futuro. Uma espécie de filho do autor, e dos que o ajudaram ao parto intelectual. Um manifesto que lembra, como no desfiladeiro das Termópilas:

“Estrangeiro, vai dizer a Atenas
Que morremos aqui para cumprir a sua Lei”.


Mas que, para além dessa lápide de sacrifício, afirma ainda, de forma límpida, o principio do amor entre os homens. Da possibilidade de recomeçar, mesmo na mais negra das noites. Da disposição firme de dar a mão a antigos inimigos, de erguer torres em conjunto, de obter a absolvição, e de absolver. Ou, como fizeram os bispos polacos, em 18 de Novembro de 1965, duas décadas apenas depois da grande carnificina, na carta pastoral aos irmãos alemães:

“Vimos perdoar, mas sobretudo pedir para ser perdoados”.

No fim das guerras, na lembrança interior, no armistício sem amnésia, na paz dos bravos, na reparação dos males, na humildade de reconhecer o que se fez, o que se sofreu, o que se poderia ter feito, na disponibilidade para afirmar os seus valores e reconhecer os dos outros, desta forma se fazem os futuros pactos de não agressão, os irmãos e os aliados.

E assim se alcança, talvez por milagre, a eternidade.

(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao nosso coeditor Virgínio Briote, que nos facultou o texto.)
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Nota do editor: