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terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25432: 20º aniversário do nosso blogue (70): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (VI): Na sua já famosa carta aberta a Salazar e Caetano, de 2010, o 'sínico' António Graça de Abreu recomendava-lhes vivamente a leitura do nosso blogue, lá no além...

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Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14.... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abril de 1974, em Cufar, escreve no seu "Dário  da Guiné": 

"De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).


1. Esta carta aberta já aqui foi publicada há mais de 13 anos... Foi escrita pelo António Graça Abreu, antes de empreender uma grande viagem à China,  com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Lamentavelmente, por um monumental lapso nosso, só seria publicada 18 meses depois, em 16 de novembro de 2010... Merece agora voltar à monstra principal do nosso blogue, no dia do nosso 20º aniversário...

 Como o dissemos na altura, é uma peça antológica, é um  documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, senão mesmo de delicioso sarcasmo, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século, legitimando uma guerra, de longa duração, a milhares de quilómetros de casa, e para  a qual ambos foram totalmente incapazes de encontrar uma inteligente e honrosa saída política... 

Não é um documento panfletário, é uma reflexão, didática,  serena, bem humorada,  sobre as oportunidades perdidas por e para todos nós (incluindo os povos africanos, que poderiam ter chegado à independência por meios pacíficos, proveitosos e honrosos, para os dois lados, reforçando os nosssos nossos laços históricos comuns).

Mas é também uma carta de confiança no futuro, de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de orgulho  na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz, independemente dos efeitos perversos, contra-intuivos, n
ão-esperados, que teve a descolonização, um processo em grande exógeno, sobre o qual Portugal de 1974/75 não podia ter grande controlo: 

"Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".

 

BI militar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: 

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 2007; (iii) tem mais de 340 referências no blogue; (iv) é sinólogo, tradutor e escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar 
e Marcello Caetano

por António Graça de Abreu


(i) Introdução


António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  – coisa que não existia no tempo de vossas vidas– é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


(ii) A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. 

Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. 

Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: 

“Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. 

O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

(iii) A Guerra

“Orgulhosamente sós”,  embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas  
– Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.


Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

(iv) Combatentes

A minha mulher é chinesa [foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [foto abaizo], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!..




Cópia de aerograma, original, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro "Diário da Guiné".



Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... 


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. 

A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

(v) A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

 
– A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

 
– No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

(vi) Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça & Camaradas d Guiné, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o António Graça de Abreu

(Revisão / fxação de texto, negritos,  numeração dos subtítuos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)
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Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 23 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25428: 20.º aniversário do nosso blogue (8): Bem hajam!, a minha palavra de gratidão para os nossos editores e colaboradores (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Vd. também poste de 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)


 





Cartoons da guerra... Do álbum 
Que se passa na frente?!!, com a devida vénia...

1. Mensagem do nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote:

Data - 4 de fevereiro de 2024, 21: 58

Assunto - Recordando o Cid e o humor na Guerra

Augusto Cid nasceu na Horta, em 1941 e morreu em Lisboa em 14 de março de 2019. Publicou os livros.
Dois anos antes de morrer, em entrevista ao Jornal I, Augusto Cid, que foi antigo combatente em Angola, não deixou de desenhar.

“Curiosamente eu fazia a minha guerra – não a guerra que eles queriam que eu fizesse. Cumpria a minha obrigação, julgo eu, mas depois quando chegava ao destacamento rapava dos meus lápis de cores e das minhas aguarelas e fazia um cartoon sobre aquilo. Quando vi que havia umas páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Posso trabalhar com eles’. Curiosamente não era mal pago. Davam-me 150 paus por cartoon, que era dinheiro. E faziam concursos em que o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia do que como furriel”, recordou.

"A guerra é uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento. Tirando isso, é uma belíssima escola”, disse ainda.

Anexo alguns "bonecos" do Cid,  extraídos do livro "Que se Passa na Frente" (com a devida vénia...)

Abraço do V. Briote

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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]


Contos com mural ao fundo >

Três amigos, três destinos - Parte I

por Luís Graça


 
Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história., reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo,

***

Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos estando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, gemendo e chorando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

O Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, reformado, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo que, no passado, há mais de oito éculos,  fora fronteira natural e política de Portugal, já não se viam...  desde os tempos da Expo 98!....

− Agora, cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos "amigos do pêto"!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez  desde 1998, o ano da Expo, o que só podia queria dizer... “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescenta aí!... (Felizmente, ainda tenho vários, mas biológicos.)

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha "um medo que se pelava de passar por aquelas bandas", sozinho, à noite, fora do resto das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que fora outrora o grande celeiro da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas, as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser homens, isto é, machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) um belo monumento da nossa terra, e mais do que isso, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!.. . Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. 

− E, tens razão, era a casa de Deus!... Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes... E havia até quem tivesse a triste ideia de a transformar em museu de arte sacra!

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para as Américas...


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mais mal educado, mais traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em terceiro grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro, negociante de gado, antigo almocreve.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, aos EUA, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!... Não lhe posso desejar mal, para mais meu parente.

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar, na Quaresma,  ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas um simples castigo no purgatório. 

− Deixa-te de tretas, o purgatório já existe, se é que alguma vez existiu...

− Concordo, é uma metáfora, como todas as criações da Bíblia...uma obra-prima da literatura universal...

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, que fazia os sermões da Quaresma e confessava ruas inteiras de putos e beatas, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um tumor cerebral,  fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...E que nos habituamos a ver sempre cheio de saúde, energia e alegria de viver...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de guarda-marinho....

 − ...numa lancha de fiscalização grande ou numa corveta, que eu de marinha (e de tropa) sou um zero à esquerda − atalhou, de pronto, o Belmiro

− A imagem que eu tenho dele era o do moço de forcados, jaqueta bem apertada, calça à boca de sina, como se usava naquete tempo, pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, garanhão, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo. Devo ser, nesse como noutros capítulos da nossa gesta heróica,  a ovelha ranhosa cá da terra... 

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade,  cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola, a política e a igreja) são algumas delas...

− Sim, coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol, os touros e o sexo…, o que no cômputo final representa 99% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... É um dos desportos favoritos da nossa gente. Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno,..

− ... ou que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta, com tristeza,  o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali num  murete do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos", em que havia "três amigos, três destinos" (título da letra de um velho fado, que o Zé Nuno tocava e cantava com muita piada). 

− Deixa cá ver se me lembro da primeira quadra... Três  amigos, três destinos / Que o Diabo moldou /, No Tejo os batizou, / Para sempre, três meninos"...

O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e chicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um bocado, 
antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Eu nessa altura era, como sabes, um maosta  intratável, arrogante, convencido...(e perdi amigos por isso).

Foi também para Lisboa, estudar, o Zé Nuno...

− ...Mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, ficava ao pé de casa, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem conservador, autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho,  é que começou cedo a tomar conta da herdade. (Dizia que não tinha cabeça para estudar.)

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi pessoa, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony. 

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições monárquicas, com criação de cavalos e de gado bravo, 
está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três ou quatro gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, que chegou a ser uma das maiores e melhores da nossa região.

− Há aí uma espécie de sina ou  anátema da História... Sei pouco da saga tumultuosa  da família, mas contava-me o meu avò, que era republicano dos quatro costados, que um dos antepassados do Zé Nuno, talvez o pai do trisavô,  teria sido um dos campinos que montou a guarda de honra ao Dom Miguel, na sua entrada triunfal em Lisboa após a vilafrancada (em 1823).. 

− Nunca lhe ouvi contar essa história... Mas, na verdade, o irmão, o "morgado", era Miguel. (Também já lá estána terra da verdade ...)

− Mera coincidência ou talvez não... Sabes que os portugueses são maus alunos em História...  Quando dava aulas (já estou reformado), punha os meus alunos a escrever a história da família, paravam logo nos avós que já mal conheceram... Era gente humilde, no geral...  Os pobres encolhem os ombros, acham que têm pouco ou nada para contar...

− De qualquer modo, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas... Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço. 

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

−  Sabes que o Zé tinha casado tarde, ficara solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, contemporâneo e condiscípulo,  em Coimbra,  do nosso José Relvas, ali da Golegã. (Nunca foram amigos, um era monárquico,  o outro republicano.)... 
E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar na universidade. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar...

 −  Enfim, Belmiro, essa é a desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. – Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do médico no consultório...

E prosseguiu:

− Belmiro, o que a gente sabe é que o raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher, o ganhão e o latifunidário... Também não já não me lembrava que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária e do colégio, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como antes para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar. 

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram a possibilidade de prosseguir os seus estudos… E de ter direito a férias de praia, no verão. 

−  O que foste agora buscar agora, a  nossa época balnear!...Tu, na praia de São Pedro de Moel, e eu na  praia da Vieira, da arraia-miúda! ....

− Ias de bicicleta visitar-me. Que inveja, os meus pais não me davam essa liberdade.. Mas gostavam muito de ti e sabiam que tu eras de famílias honradas e sobretudo uma "boa companhia"...

O Tony estudara até ao antigo 5º ano do liceu no antigo  colégio particular da terra;  com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia.

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes da Faculdade de Letras,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial

Um dia um pequeno grupo foi apanhado pela PSP a deixar "papéis subversivos" na estação de metro  e no interir das carruagens, a horas mortas... A PIDE tomou conta da ocorrência.

… As mensagens eram "pacifistas",  o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(sic), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação sacerdotal. Saiu do seminário, aos 21 anos, zangado com  Deus e com os homens...E aos 22 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.

***

− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta das ruínas do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam... Só eu ia lá, à sua casa, aliás um casarão do séc. XVIII, fria e desconfortável, mas descomunal para um miúdo da minha idade...

O Tony alongou-se depois com memórias sobre a família do Zé Nuno e a sua: 

− Como sabes, os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seus dois ou três empregados.

− Enfim, encontravam-se, ao menos,  na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo....

−  Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes.! .. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Nunca se tratavam por tu... 

Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo... como de resto aconteceu, de norte a sul do país...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:

− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-crente, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem das ciências duras, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que infelizmente  já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , no colégio, nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde a minha mulher, que era de lá, foi notária,  antes de decidirmo-nos, já com filhos, de voltar às minhas origens... E aqui estou na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria… Sabes, as ilhas, sim, são claustrofóbicas. E eu seria incapaz de viver e trabalhar num navio como o Zé Nuno... (Se tivesse que ir à tropa, oferecia-me para a Força Aérea.)

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Mesmo soalheira, há de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... Lembras-te, vieste cá, em 1998, ao enterro do meu pai... Fiquei muito sensibilizado com o teu gesto solidário...

− E agora é a rapaziada do nosso tempo... Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… 

E, mudando de assunto, o Tony fez uma proposta ao amigo:

− E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns bons quilómetros  para fazer ?!… (E cada  menos gosto  de conduzir!...) Fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos lá dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras do  largo da Misericórdia. O "Carpe Diem". É de um gajo castiço, poeta popular, o nosso Aleixo, eu chamo-lhe o António Aleixo do Ribatejo. Um bom sítio para se petiscar e beber um copo.

 (Continua)

© Luís Graça (2018).

Revisão: 3/2/2024

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24875: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): pequeno glossário para compreender as letras de fado e outros textos em calão


"Fado da Trolha", António Manuel Lopes, Lino Ferreira, Silva Tavares, Feliciano Santos, António Carneiro, Revista | Vaudeville Mãe Eva, Sassetti & C.ª Editores, s/d., p. 1 (Fonte: Museu do Fado, com a devida vénia...). 
 


1. Aqui vai uma ajuda para "descodificar" as letras dos fados e outros textos que reproduzimos nos postes P24840, P24858 e   P24866 (*)

Para esta recolha (feita muito em cima do joelho, mas consumindo já umas largas horas...), ocorremo-nos, no essencial, do  livro de Guilherme Augusto Simôes, "Dicionário de Expressões Populares Portugueas" (Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1985, 432,  XX pp.), talvez a mais completa compilação  de termos e expressões idiomáticas neste domínio, incluindo "arcaísmos, regionalismos, calão e gíria, ditos, frases feitas, lugares comuns, aportuguesamentos, estrangeirismos e curiosidades da linguagem"... (Na edição que consultámos, de 1985. a compilação tem mais de 25 mil entradas; há outra edição posterior, Dom Quixote, 2000, com 700 pp. )

Pena é que o autor tenha feito autocensura, expurgando do seu dicionário grande parte dos palavrões considerados "obscenos",  esquecedo-se que o leitor estrangeiro, que ande a aprender português, também tem direito a conhecer o nosso calão de carroceiro:

(...) "Encontra-se neste dicionário:

  •  o calão académico (usado pelos estudantes), 
  • o calão vulgar (usado pelo povo), 
  • o calão dos marginais (usado pelos criminosos de todo os graus, desde o simples vigarista ao assssino da pior espécie)
  •  e omitimos, o mais possível, o calão ordinário a roçar a obscenidade. 

Mas deste, ao omiti-lo, não foi por falso pudor, mas sim por por verificar que infelizmente não é necessária a sua nomeação. tão sabida é pela nossa mocidade de ambos os sexos" (pág. XV). (Negritos nossos).

Não é necessário esta pregação moralista do autor: os modernos dicionaristas e lexicógrafos  já há muito que grafaram os nossos palavrões ditos obscenos, que também fazem parte da nossa língua materna: quando nos apetece mandar para o c...ralho alguém, que nos chateia os c...rnos ,  não o fazíamos, nos quarteis e matas da Guiné,  na língua dos nossos vizinhos espanhóis, mas na nossa querida língua...  

De resto, todas todas os nossos  "palavrões"  estão ao alcance de toda gente (a começar pelas criancinhas...) na Internet.

No que respeita à gíria ou calão do fado de antigamente, o autor recorre também ao livro "A gíria portuguesa: esboço de dicionário do 'calão' ", de Alberto Bessa (1901). 

Consultámos também o nosso camarada, transmontano de Moncorvo, infelizmente já falecido, o jornalista e escritor  Afonso Praça (1939-2001),  "Novo Dicionário de  Calão", 2ª ed. rev. (Lisboa, Editorial Notícias, 2001, 258 pp.).   O autor (AP) discrimina alguns termos e expressões do calão conforme o meio de origem: crime, desporto, droga, estudantes, jornalismo, militar  (incluindo Colégio Militar, Grande Guerra e Guerra Colonial), e regionalismo... 

Infelizmente, o Afonso Praça (que, além de seminarista,  foi alferes miliciano, em Angola, na zona norte, entre 1963 e 1965), já não é do tempo do nosso blogue: morreu prematuramente aos 62 anos. 

Já agora, e para saber algo mais sobre a história do fado, ver aqui uma excelente sinopse, disponível na página oficial do Museu do Fado, e baseada no essencial na bibliografia etnomusicológica e histórica sobre o fado de Rui Vieira Nery, professor associado da FCSH/NOVA. 


Pequeno glossário para compreender as letras de fado e outros textos em calão (de A a Z)

Quem se metter c'um fadista
E o ouvir faltar calão, 
Fica logo a ver navios, 
'Té perde a mastreação.  (pág. 93)

(...) Que era então p'ra se lembrar
Que o mundo é uma fumaça,
E emquanto n’elle se passa
E' dar-lhe, toca a gimbrar. (pág. 99)
 
(in: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904)


afinfar (bater em, arrear);
alcouce (bordel, prostíbulo; etimologia duvidosa);
alcoveta (mulher intermediária no comércio do sexo; do árabe, al-qawwâd, intermediário);
algema (pulseira, bracelete);
amarra (corrente do relógio, pulseira)
andantes (pés, pernas, sapatos);
andar ao fanico (na prostituição de rua, à procura de cliente);
andar no fado, andar no mundo, andar na vida (prostituir-se);
andorinha [prostituta, (AP)];
antrames [algibeiras, mas bolso interior o casaco, (GUS)];
apeado (diz do que deixou de ter amante, ou viatura pópria);
arame (dinheiro);
archeiro (bêbado);
arcos,arcosos (anéis);
arranjo, arranjinho (conquista amorosa, engate);
às duas por três (quando menos se espera);
asas (braços);
avental de pau (meia-porta dos bordeis do Bairro Alto);
avesa (tem);
avesar (conseguir, juntar, por ex., "bago grosso");

bago (dinheiro, termo que já vem do séc. XVIII);
bailhão [fadista, desordeiro, rufião (AB / GUS)];
batata (soco);
batolas (mãos);
beber (apanhar pancada);
belfe (calote);
brezunda, brezundela (pândega, brincadeira,pagode);
briol (vinho);
buchinha (num baile, era ceder a dama a outro cavalheiro);
butes 
 [otas, pés) (passar os butes/ fugir, dar aos butes / correr, meter os butes a caminho / partir, meter os butes/ enganar, mentir), (AP)];
buzilhão [dois vinténs, mas também muito dinheiro (GUS)];

cabides (orelhas, brincos);
camolete (?)
calhar (agradar, ficar bem);
canalha (biltre,patife, gentalha);
carinha (um) (moeda de prata de 500 réis, ou cinco tostões);
carunfa (traição);
carunfeiro (traiçoeiro);
celitro (decilitro, de vinho);
centopeia (mulher feia, de aspeto repelente);
cépios (vd. sépios);
charuto (pé de cabra, ferro para forçar fechaduras);
chata gorda (carteira bem recheada);
cheta (um vintém, 20 réis; 5 chetas equivalia a 1 tostão ou 100 réis);
cocheiro (jogador de pau);
comadre (mexeriqueira);
conquista (namoro, namorada),
cortado (vinho com soda);
cortiço (casebre);
cri-cri (?):
c'roa (dois mil, ou mal...réis);
cunfia (confiança);
cuté (casa ou quarto para encontros amorosos, ou para refúgio temporário)

dar os bons dias (ser o mais valente);
data (grande porção de alguma coisa, por ex, "camolete");
deixar espalhado (matar);
desarmado (teso, sem dinheiro, sem recursos);
direitinho (pessoa honrada e honesta);
duques (?):

elas (batatas, "iscas com elas");
embigo (baixo ventre);
encadernador (cangalheiro, agente funerário, gato pingado)
ensaio de galheta (ar de bofetadas);
entalada (uma isca metida num quarto de pão);
entortar (embriegar,mas também tornar pior);
envinagrado [embrigado, mas também mal disposto, zangado, azedo, (GUS)];
esfola (penhorista(;
esgueirar-se (fugir);
espiche (do inglês, "speech") (discurso, elogio, brinde, mas também hospital);
espinha (navalha);
estafar (matar, dar cabo, gastar de maneira perdulária);
estampa (bofetada);
estar a dormir (roncar);
estar no pinho (não ter amante);
estarim (cadeia, prisão);
ético ("estar ético", sem dinheiro);

fadista (homem vadio, brigão, desordeiro;mas também ulher que se entrega à prostituição);
faduncho (fado mal cantada, com má letra e música):
farol, faroleiro (indivíduo que joga por conta da banca, na casa de jogos);
fazer joginho (bater);
filhoses (notas de banco);
flaquibaque (estalada);
fole das migas (barriga);
francês (indivíduo enganador, desleal); 
fuça (cara);
fuças, ir às  (esbofetear, bater);
futrica [designação dada, entre os estudantes de Coimbra, a quem não é estudante; mas também futre, pessoa desprezível, (GUS)];

gabinardo (gabão, casacão, capote, gabardine):
gadunhas (mãos);
gaja, gajona (maneira depreciativa de referir uma mulher);
galdinas, galdras (calças);
galego (indivíduo grosseiro);~
galfarro (comilão, vadio, mas também agente da polícia)
galfo (fidalgo);
galopim (moço de recados, vadio, garoto, trampolineiro);
gamote  [reunião… mas também, grupo e rapazes, ou elementos do mesmo bando, (GUS)];
garonga (?);
gato pingado (agente funerário)
gentaça, gentalha, gentinha,gentuca (ralé, gente ordinária);
giga (vender em; arriar a) [discutir usando linguagem e modos grosseiros; insultar, gritando e gesticulando, arriar a canastra, (GUS)]
gimbrar
[viver à custa da amante, chular) (AP)];
grudar (convir, ser aceitável ou razoável);
guitarra (barriga);
guitarra pela cabeça abaixo, enfiar uma ( fazer uma gravata);

horas mortas (altas horas da noite);
hortas (retiros, tabernas nos campos, nos arredores de  Lisboa; começavam logo em Benfica);

isca [ pergunta capciosa, feita como objetivo de obter a resposta já esperada ou uma mais conveniente, (AP)]: 
iscas com elas (iscas com batatas);

juntas (pernas);
juiz do Bairro Alto (Deus);

labita (fraque);
laia (prata, dinheiro; mas também espéceie, casta: gente da mesma laia);
lárpios (ladrões);
libra (4500 réis);

má rês (pessoa velhaca, de mau carater, de maus instintos);
marafona (mejera, mulher ruim, mal-vestida, também rameira);
mariola (patife);
mastro (pénis);
meia-lata (meio litro de vinho);
meia-unha (meio tostão);
meio-caiado (água com café):
meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar);
místico (?);
moca (pénis, mas também cacete, asneira);
modista (taberna);
mondonga (mulher suja e desmaselada);
morraça (vinho ordinário, bebida reles);
mulato (café com leite);

nadar (justificar-se);
naifa (navalha);
naifada (navalhada);

orchata (azar ao jogo);
orchatado (?);
ourelo (cuidado, cautela);

pai de vida, pai da vida! [exclamação, "o que para aqui vai!", (GUS)];
painço, milho (dinheiro);
paivante (cigarro);
palhetas (botas, sapatos);
panaça (marido que tem medo da mulher);
passar as palhetas (esgueirar-se, esquivar-e);
pescoço (altivez, arrogância, soberba);
piela (bebedeira);
pingado (ligeiramente embriagado ou etilizado);
pingar-se (embededar-se);
pitorra(cabeça);

quarto de bife ou quarto de dose (um meio bife custava 140 réis ou sete vinténs; um quarto custava metade; retexto para se beber nais um copo);
queijada (a quantia que o chulo recebe da amante, mas também gorjeta ou gratificação);

rapioca (regabofe, pândega, paródia);
rascoa 
"mulher da vida", prostituta; era duplamente exploradas: pelos chulos (rufiões, que nem todos eram fadistas, vivendo do pequeno crime) e pelas "patroas", as donas das casas ("cobravam, em geral, quinze tostões a dois mil réis por dia por cada casa"; (...) "uma exploração ignóbil de que as infelizes eram vítimas, pois que, na maior parte dos dias, não ganhavam nem para o petróleo, como elas próprias diziam" (Avelino de Sousa, 1944, pág. 192)];
requineta (fraque);
retanha (gazua, ferro de abrir fechaduras);
roda,rodinha (um tostão, duas rodas, dois tostões ou dois-tões);
rodilha (gravata, mas também pessoa servil e bajuladora(
rouxinol (apito);

sanha (bofetada);
sardinha, sarda (navalha);
se m'entende (cemitério);
sépios (chapéus altos);
serviço [mulher fácil, ou criada com que se traz namoro, (GAS) ];
sino grande (copo de vinho dos grandes);
soldado de calça branca (cigarro);
suquir [ bater; mas também comer, furtar (GAS) ];

tabuleta (cara, fuça);
tingar (fugir, desaparecer);
tostão (100 réis, 5 chetas ou 5 vinténs);
toudas (sopapo);
trolha (pancadaria: andar à trolha; mas também servente de pedreiro);
trompázio na fuça (soco na cara);
trovas a atirar (cantigas que encerravam uma provocação, dando origem por vezes a conflitos);
tusto (tostão);

vintém (20 réis);
viúva (garrafa preta da taberna);
viúva, filhos da (copos)

urdimaças (mexeriqueira)

zaragata (pancadaria, desordem);

Abreviaturas - A recolha, feita do nosso editor LG, baseia-se sobretudo em Guilherme Augusto Simões (GAS) (que por sua vez tem uma bibliografia extensa, com cento e tal autores)... O Alberto Bessa (AB) é uma fonte obrigatória... E, pontualmente, recorremos também ao Afonso Praça (AP). Para um ou outro vocábulo não conseguimos encontrar o significado: por exemplo, camolete, duques, místico, orchatado... 

Mas este é um glossário aberto... Esperamos que os nossos leitores possam também dar os contributos do seu(s) saber(es), alargando o nosso campo  de cohecimentos ao calão do Porto (Bairro da Sé), e ao nosso calão militar (ou de caserna).

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24866: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (22): mais quatro fados com letras em calão do fadista ou faia de antigamente
Vd. também:

17 de novembro de 2023 Guiné 61/74 - P24858: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (20): O calão do Bairro Alto em finais do séc. XIX, algum do qual chegou à nossa caserna...

11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...